Obrigado pela sua leitura! Se alguém está procurando o filme ideal para os atuais tempos de peste, guerra e revolta, Um Condenado à Morte Escapou é a escolha certa. Na verdade, é um filme de guerra que vai contra todos os filmes de guerra: não tem cenas de batalha, gritos, sangue esguichando por todos os lados, cabeças decepadas, braços arrancados. Enfim, nada que o espectador acredita ser “espetacular”. Mas não se assuste: assim que você entrar na lógica e no ritmo da película, verá que abriu-se uma nova porta — no caso, uma porta para a obra de Robert Bresson, um desses casos únicos do século XX. Robert Bresson é um cineasta que, por criar um estilo ímpar — que ele chamava de “cinematógrafo” porque discordava de tudo o que parecia “cinema”, isto é, bombástico — , está no mesmo panteão de artistas revolucionários como Leonardo Da Vinci, Michelangelo, Picasso, Joyce e Schöenberg pela obstinação e sucesso na pesquisa de uma nova linguagem. Mas, se nos exemplos citados, a revolução foi um estrondo, a de Bresson foi um sussurro que cresceu aos poucos, instalando-se de mansinho em um público fiel até permanecer sedimentada na memória. Esse fator de usar o tempo sempre a seu favor — justamente porque não se preocupa com ele — se deve ao fato de Bresson ser um dos poucos cineastas religiosos que dedicou sua vida e sua obra na busca do inefável, do intangível e do eterno nos detalhes do cotidiano. O tema da busca de Bresson é a caçada a Deus. Ele procura o Absoluto despojando-o de todos os excessos, centrando-se apenas no essencial. Seus atores são não-profissionais escolhidos na rua, treinados como modelos, ensaiados à exaustão para que não tenham expressividade dramática. Sua câmera se limita a fazer os movimentos necessários, sem firulas de lentes, luzes expressionistas ou mirabolantes travellings. A montagem combina uma riqueza meticulosa de sons recriados e sons reais, unindo cena por cena, plano por plano, para que se tenha o efeito do filme como um todo e não apenas por partes (os chamados “atos de bravura” que François Truffaut tanto falava, nos quais o cineasta decidia se arriscar em uma cena ou outra); e há o modo de contar a história, sempre escolhendo elipses, metáforas, narrações em off que possam despir o filme de sua estrutura e apresentá-lo quase nu em sua pureza. É um exercício ascético e, por isso mesmo, de um rigor implacável. Bresson não brinca em serviço: desde do seu primeiro filme, Os Anjos do Pecado (1943), ele não faz nenhuma concessão, aprimorando-se na sua busca como se estivesse obcecado tanto com a questão divina como com a questão de como procurá-la. Na verdade, todos os filmes de Robert Bresson são exercícios de estilo. Ele escolhe um tema e faz um filme inteiro em torno do assunto, estruturando-o como um sistema que, por trás do mínimo, cria-se o máximo. Será assim com As Damas do Bois do Boulogne (vingança), Diário de um Pároco de Aldeia (corrupção), Pickpocket (redenção), Lancelot du Lac (o mistério feminino) e L’Argent (o mal absoluto), obras que mostram a procura pela exatidão da palavra justa (“Controlar a precisão”, escreve em uma das suas Notas do Cinematográfo, “ser eu mesmo um instrumento de precisão”) e uma perseverança fora do comum. E não à toa que será Bresson o criador do maior elogio sobre a perseverança: Um Condenado à Morte Escapou. O filme conta a história de um prisioneiro durante a ocupação nazista na França e que está decidido a fugir. Durante uma hora e meia, Bresson mostra o planejamento e a realização dessa decisão por meio de itens comuns e simples: uma colher, as mãos, um lápis, colchões, urinóis, etc. Os rostos dos seus atores recusam qualquer psicologismo; parecem que estão sendo radiografados pela câmera de Bresson, que perscruta o espírito deles sem nenhuma benevolência. É como se estivesse dizendo: eles são o que são — cada um com suas esperanças, virtudes e fraquezas. Não há como explicá-los. Somente sabemos que o prisioneiro (de nome Fontaine — de “fonte”) deseja escapar. Ele quer sua liberdade, só isso. Poderia ser um excelente filme de suspense a lá Hitchcock ou um filme de fuga que não ficaria nada a dever a Um Sonho de Liberdade ou Alcatraz — Fuga Implacável, mas Bresson vai além. Por trás da fuga esconde-se uma meditação sobre a graça divina e a possibilidade de ressurreição. O subtítulo do filme dá a chave: O vento sopra onde quer, que é retirado da passagem em que Jesus fala com o fariseu Nicodemos no Evangelho de João. Fontaine quer se tornar, no meio da insanidade da guerra, um renascido em Deus e, graças a Este, a luz aparecerá nas coisas mínimas, mesmo nos momentos mais tenebrosos. É especialmente tocante como Bresson mostra a pequena vitória de Fontaine quando ele consegue soltar as algemas das mãos ou então quando encontra três homens (clara referência à Trindade) que se oferecem para passar informações fora da prisão. Outro momento antológico ocorre na fala de Fontaine com outro prisioneiro, um pastor, que, ao receber uma Bíblia contrabandeada, disse que “agora tudo tem um outro sentido”. O pastor passa em um papelzinho a Fontaine uma passagem dos Evangelhos, justamente o encontro com Nicodemos, que é lido para um ancião que, amargurado, desistiu de viver e espera a morte na prisão. Fontaine lê a seguinte passagem em tom emocionado (uma raridade tratando-se de um personagem bressoniano), como se o trecho fosse dirigido a ele:
Mas não pensem que Bresson vai embarcar numa pregação piegas. Ele se preocupa com o mistério do ser humano em todas as suas contradições. Por exemplo: na mesma cena em que Fontaine cita o Evangelho e temos essa fagulha de esperança, escutamos o som de uma metralhadora. Um prisioneiro que tentou fugir acabou de ser fuzilado. Fontaine se desespera, mas não desiste: continua preparando a sua fuga com uma lentidão irritante. “Fuja logo! Pare de ser perfeccionista!”, avisa o pastor. Fontaine não se altera; ele apenas espera o momento certo — o problema é que não sabe quando este chegará. Isso acontece numa estranha coincidência (Bresson é um fanático por esses fatos que demonstram a presença de uma ordem superior): no mesmo dia em que avisam Fontaine que ele será fuzilado, colocam em sua cela um garoto desertor. Seria um espião ou alguém confiável? Fontaine passa um tormento dos diabos, literalmente. Afinal de contas, sua liberdade depende da morte de alguém — e ele tem de fugir de qualquer maneira. Contudo, após uma conversa na qual o jovem conta sobre sua mãe e sua irmã, Fontaine decide fugir com ele. A partir daí, temos os vinte minutos mais extenuantes do cinema, numa fuga em que cada passo pode ser uma falha e cada respiração deve estar sincronizada com a passagem do trem. Tudo culminará na segunda escolha que Bresson coloca estrategicamente: Fontaine precisa matar um soldado nazista para executar a fase final da fuga. Não há outro jeito: ou é ele ou é o soldado. Obviamente, a decisão é contra o alemão. Bresson mostra Fontaine nervoso, “escutando as batidas do seu coração” e sequer mostra o assassinato (como de hábito). Mas a força dessa decisão torna o filme fascinante: não estamos falando de santos, Bresson nos diz, estamos falando do ser humano, esse elemento sem qualquer explicação, mas destinado à eternidade, mesmo com todos os seus pecados e erros — sim, você o escuta, mas não pode dizer de onde vem nem de onde para vai. Terminada a fuga, Fontaine abraça o garoto rapidamente (em Bresson os momentos de transcendência são efêmeros), no exato momento em que se toca o Kyrie Eleison da Missa de Mozart. O jovem segura o choro e diz uma fala de emoção devastadora: “Se minha mãe pudesse me ver agora”. Ambos correm, rumo a uma névoa criada pela passagem do trem. Em Um Condenado à Morte Escapou, o importante é a fuga como símbolo da redenção e de renascimento. E aqui está a verdadeira guerra, a mais preciosa e justa de todas, que é a guerra interior. Fontaine luta com seus medos, ansiedades, dúvidas, escolhas, tudo para alcançar seu fim maior — a liberdade do seu espírito. O assassinato do soldado nazista é o nó górdio da questão, o momento em que ele se mostra mais humano, mais vulnerável e, por estranho que pareça, mais ligado com seu próximo. É a mais simples das questões: a da sobrevivência. Bresson mostra que a redenção não é alcançada através de uma via simples e reta — é o contrário, com veredas estreitas e muito sinuosas, comprovando o que Guimarães Rosa sempre disse: “Viver é perigoso”. É esta ambiguidade que torna essa parábola sobre o vento uma magnífica obra de arte. Bresson conseguiu uma vitória com esse filme, levando seu método e seu estilo a uma perfeição que só seria ultrapassada quatro anos depois, com o sublime Pickpocket (1959). A partir daí, seu sistema está consolidado e não terá nenhuma alteração até L’Argent (1983), sua última película, talvez a mais rigorosa reflexão já feita sobre o mal junto com O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick. Sua morte em 1999, aos 92 anos, foi divulgada com discrição, como foi a sua vida e sua obra. Mas assim são com as coisas do espírito: elas exigem uma densidade e uma profundidade que obrigam o ser humano ficar com os seus sentidos afiados. Para o homem espiritual, o homem que acredita na perseverança como um dom divino, o tempo é apenas um elemento a ser descartado na lenta fogueira de rascunhos que é a vida terrena. O que importa é escutar o sopro do vento. Quem quiser colaborar com o meu trabalho, além do valor da assinatura desta newsletter pessoal, pode me ajudar por meio do pix: martim.vasques@gmail.comE quem quiser apertar o botão abaixo só para fazer a minha felicidade - e manter essa newsletter de modo mais profissional, be my guest: *** AVISO: NOVO CURSO - ALÉM DO ZEROUM NOVO TRECHO LOGO ABAIXO:Queridos leitores: Temos um novo curso ALÉM DO ZERO - VIVENDO NA RELIGIÃO DA TECNOLOGIA. 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quarta-feira, 17 de dezembro de 2025
Uma Parábola Sobre O Vento
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