Diário e rememoração, I Por Alexandre Sartório Comecei a escrever um diário em que trato dos livros que li, dos discos que ouvi, dos filmes, peças e óperas a que assisti e das exposições que visitei, no meio da pandemia, como forma de, basicamente, tentar segurar um pouco mais entre os dedos da memória a riqueza das obras de arte que eu tinha a chance de apreciar, riqueza que, no mais das vezes, se mostrava mais plenamente apenas quando eu tentava explicitá-la num texto. Ao longo do tempo, a preocupação com o que eu lembraria de cada livro, de cada peça, amainou, tudo que vivemos com o coração, acontecimentos ou obras de arte, não perdemos jamais; o que cresceu foi a certeza empolgada de que as riquezas guardadas pelas obras brilhavam mais quando eu as mantinha mais tempo na mente, polindo-as e admirando-as, o que é, tanto uma forma de me enriquecer, quando de agradecer às obras e aos seus criadores: “A crítica nasce de uma dívida de amor”, como diz George Steiner ao abrir seu livro a que, aliás, devo muito, Tolstói ou Dostoiévski. Nesses mais de quatro anos, às vezes escrevi menos, às vezes mais; às vezes tive uma ou outra ideia relativamente boa, que desenvolvi ou não em textos, apesar de, em grande parte das entradas do diário, recolher ideias de autores, espalhar impressões rápidas - enfim, bem ou mal, exercitei a mente e a alma, por gratidão, de um dos jeitos mais profundos que o ser humano inventou: escrevendo. Espero que você, que acompanha a suada empreitada cultural da [trabalhar cansa], aproveite algo disso tudo. ** São Paulo, 23/02/2021. Hoje, em torno de uma da manhã terminei de ler O Tempo Redescoberto e, com ele, a Recherche, o que quer dizer que sou um gênio assombroso. Sinto-me genial como se tivesse escrito as mais de 3000 páginas e não simplesmente as lido. Quero escrever algo sobre o Proust; provavelmente terá a ver com os momentos luminosos ou as “visões deslumbrantes e distintas” (p. 208) – madeleine, campanários de Martinville, as árvores da estrada de Balbec –, que fazem florescer uma felicidade inaudita, absorvente, no Narrador. Acredito que as formulações sobre essa iluminação, desenvolvidas entre as páginas 207 e 250, mais ou menos, têm muito do ideário simbolista (expressão do inefável, do mistério, do absoluto), insinuam certo esteticismo, mas não o é propriamente; talvez a aproximação com a mística seja esclarecedora. As ‘visões deslumbrantes’ são uma experiência fora do tempo, e o Narrador sente-se impelido a transfigurá-las na obra de arte; ela é para ele a realização da vida, mas a obra não cria as visões, o mistério experienciado – a literatura não é a criação de uma outra realidade, um outro mundo, por meio da linguagem –, mas é a expressão e investigação deles, até onde a fronteira do mistério permite. Eu também assisti a T-Men, de Anthony Mann, e The Shadow of a Doubt, do Hitchcock. Há uns dias, esqueci de anotar, vi Jornal d’un Curé de Campagne, do Bresson. *** São Paulo, 26/02/2021. Entre ontem e hoje, assisti pela segunda vez a Zodiac, do Fincher, e a Carrie, do Brian de Palma. Ontem, reli com atenção o ensaio de Malcolm Bradbury sobre Proust – ensaio introdutório, em que o crítico britânico trata principalmente da modernidade da Recherche (entre os principais fatores disso estão: papel central da consciência, a investigação psicológica, a concepção da arte, a meta-literatura) –, e, hoje, um bom ensaio de Gui Freitas sobre simbolismo, desespero, fé e Deus, em Ash Wednesday e Four Quartets, do Eliot. *** São Paulo, 27/02/2021. Acabei de assistir a Atração Fatal, de Adrian Lyne. Um pesadelo que leva semanas para acabar. *** São Paulo, 03/03/2021. Esses dias, assisti a The Trouble with Harry (O Terceiro Tiro), do Hitchcock; Em Busca da Terra do Nunca, Marc Foster; The Apartment, do Billy Wilder; e, hoje, The Conversation, do Coppola. Ontem, comecei a ler o Proust (A Pomba Apunhalada), do Pietro Citati. Eu também espalhei umas frases na tela, como papéis pelo chão, sobre meu possível texto tratando do Proust: A Rechercheé um relicário de experiências místicas, do encontro com a “realidade essencial” – essencial: extratemporal. “Na negação da Morte e do Tempo, na negação da Morte porque negação do Tempo. A morte morreu porque o tempo morreu” (citação e algumas das expressões são de Beckett, Proust, 1986, pp. 60-61). A Rechercheé a prece para que o Tempo seja, de uma vez por todas, mergulhado na eternidade. A Rechercheé, ao mesmo tempo, diário de impressões de que a alma é imortal e a prece para que ela verdadeiramente o seja, e seja salva. ** O senhor(a) é atualmente um(a) assinante gratuito(a) de Livraria Trabalhar Cansa. Para uma experiência completa, faça upgrade da sua assinatura. |
Total de visualizações de página
quarta-feira, 22 de outubro de 2025
Diário e rememoração, I
Assinar:
Postar comentários (Atom)

Nenhum comentário:
Postar um comentário