Obrigado pela sua leitura! The interests of a writer and the interests of his readers are never the same and if, on occasion, they happen to coincide, this is a lucky accident. W.H.Auden. Agora que o homem está morto, podemos falar sobre ele e sua obra. Alguns dias após o falecimento de Jerome David Salinger, o famoso autor de O Apanhador no Campo de Centeio (1951), Nove Histórias (1953), Franny & Zooey (1961), Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira, Seymour: uma introdução (ambos de 1963) e Hapworth, 16, 1924 (1965), apareceram fotos suas no site da revista The New Yorker. Como se sabe, a publicação foi a responsável pelo seu lançamento no mundo das letras; ali, Salinger era mais do que Salinger: era um nome que ultrapassava as eras, o responsável por renovar o conto norte-americano, o único que poderia ficar lado a lado com Fitzgerald e Hemingway. As fotos foram tiradas no final da década de 60, possuíam aquela cor esmaecida pelo tempo e apresentavam um homem que andava calmamente pelas ruas empurrando seu carrinho de bebê, como um pai de classe-média que tivesse apenas uma única preocupação: cuidar dos filhos. A responsável por aquelas imagens era ninguém menos do que Lillian Ross, a escriba da coluna The talk of the town, falecida em 2017 e que foi uma das amigas pessoais de Salinger. Ela divulgava as fotos só agora, talvez para respeitar o desejo de anonimato de seu colega; talvez para que ele pudesse ser finalmente visto como um homem comum, e não como o “louco-eremita-paranoico” que o julgavam, enquanto escrevia — ou deixava de escrever — o corpus de histórias mais perfeito que a literatura norte-americana já produziu. É claro que Salinger tinha concorrentes à altura na época em que se viu o auge da sua escrita: Faulkner, Flannery O´Connor, J.F. Powers, Thomas Pynchon e William Gaddis. Mas reparem num detalhe: se você for um fã do criador de Holden Caulfield, vá à sua biblioteca, veja na estante os livros de Salinger e compare-os aos de outros autores. São quatro livros publicados, de duzentas páginas cada, e um conto que seu autor jamais se dignou de reeditar e que deixou vir a público somente uma vez, e em uma revista considerada “elitista”. Quem poderia imaginar que esses quatro livrinhos criariam tamanho rebuliço na literatura de um país? O que eles têm? Qual é o seu segredo, se há algum? Junto com as fotos de Lillian Ross para a The New Yorker, começaram também a surgir outros relatos: um deles foi o do “quase editor” de Hapworth 16, 1924, que recebeu do nada um telefonema, informando-o que J.D. Salinger gostava do trabalho da sua editora independente, fundada havia alguns anos. Marcaram um encontro e o rapaz foi à cidade de Nova Iorque; lá, encontrou o velho escritor, ao lado de turistas que iam à Biblioteca Nacional e de crianças que brincavam no parque, sentado no banco de uma lanchonete. Conversaram por duas horas e acertaram alguns detalhes para a confecção do livro. Por motivos que não nos dizem respeito, a publicação nunca saiu. Mas o importante aqui é o fato de que Salinger podia estar ao seu lado, se você quisesse encontrá-lo. Todos queriam uma foto sua, uma declaração qualquer, e ele estava ali. Há uma liberdade peculiar nessa atitude. É como se um artista quisesse mostrar ao seu público que o que é sério não é sua pessoa, mas sim sua obra. E só através dela é que se poderá compreender definitivamente como podemos desaparecer neste mundo sem abandoná-lo e sem, sobretudo, esquecer da existência. Regra No 1: Nunca confie num policial vestido com uma capa de chuva. Se há um segredo e um começo, ambos mostraram-se inicialmente ao mundo em 1951, com a publicação do pequeno romance O Apanhador no Campo de Centeio, também conhecido por seu título original, muito mais poético e enigmático: The Catcher in the Rye. Antes disso, Salinger já era um talento descoberto pelas rodas nova-iorquinas. Tinha alguns contos publicados pela The New Yorker, fazia questão de cercar-se de uma aura misteriosa — contribuía para isso o fato de ter namorado Oona O´Neill, filha do famoso dramaturgo Eugene O´Neill, antes dela o ter abandonado para ficar com ninguém menos do que Charlie Chaplin, e alguns afirmavam que era o legítimo sucessor de Hemingway e Fitzgerald. Ele não se fazia de rogado: confirmava todos esses boatos e parecia ter uma auto-confiança de que seus patrícios hebreus não hesitariam de chamar de chutzpah. Ora, se há algo que Holden Caulfield, o personagem mais famoso da galeria salingeriana, tem em excesso é justamente chutzpah. Sim, ele é insolente, impertinente, arrogante — tudo isso está nas primeiras linhas do romance, em que Salinger resolve acabar simplesmente com a influência de Charles Dickens no gênero em que trabalhará: o romance de formação. Reparem no fôlego da seguinte sentença: If you really want to hear about it, the first thing you´ll probably want to know is where I was born, and what my lousy childhood was like, and how my parents were occupied and all before they had me, and all that David Copperfield kind of crap, but I don´t feel like going to it, if you want to know the truth. Hoje, palavras como crap ou phony não impressionam mais, é claro, e sequer provocam o frisson que o romance causou na década de 50. Mas o chutzpah está ali, no estilo serpenteante, cheio de tensões entre o coloquial e o formal, e qualquer um que depare com essa abertura fica com os cabelos em pé, em um impacto que talvez só tenha paralelos em outro livro, lançado nove anos antes, e que também preza pela concisão e pela clareza: O estrangeiro (1942), de Albert Camus. A referência não é aleatória; tanto o livro de Camus como o de Salinger têm algo em comum, e não se trata da simples coincidência de que seus personagens principais são dois desajustados. Eles vão além, captam algo que a superfície da época tentava e não conseguia, e que só dois artistas de primeira categoria poderiam fazer. Este “algo” — e, vejam bem, é aqui que começa a ser revelado o segredo de Salinger, talvez o segredo mais bem guardado da história da literatura moderna — é que ambos os livros desvelam a impossibilidade de se construir uma unidade do ser no mundo do século XX. Obviamente, a descoberta deste paralelo não é minha — creditem isso a René Girard, o velho e bom monomaníaco do desejo mimético que tem olhos mais afiados para essa situação do que qualquer crítico literário que se preze. Mas isso não significa que estamos impedidos de fazer os nossos próprios vôos. Mersault e Holden Caulfield são diferentes em um único aspecto: o primeiro é um assassino confesso e o segundo é somente um jovem muito perturbado, alto demais para a sua idade, com uma precoce mancha branca nos cabelos, e, como se não bastasse a insolência, a sua inteligência o leva a uma inquietação que pode lhe custar o futuro. De resto, ambos têm a mesma atitude perante o mundo: a indiferença levada ao limite, o ódio pela banalização de si mesmo em uma sociedade phony e, mais do que tudo, a luta desesperada para preservar um pouco da individualidade¹. Pode-se dizer que isto estava no zeitgeist americano ou europeu, rondando todos como um animal prestes a abater alguém de surpresa. Mas o segredo de Salinger foi que ele deu a forma definitiva para tal atitude — e, o melhor, sem escancarar isso ao leitor, apenas apontando o dedo e sem tocar diretamente a ferida. Ele faz o contrário: mostra aos poucos a psique perturbada de Holden e, quando menos se espera, o romance que, no início, aparentava estar ao lado dos adolescentes desajustados (como pensa o vulgo e como quer pensar o leitor que leu Salinger pelos olhos de uma mídia abduzida pela mediocridade), revela-se como o seu maior crítico e também como o seu mais carinhoso alerta. Assim, Holden Caufield atravessa uma conversão ao real que, para citarmos novamente René Girard, vai da mentira romântica e chega à verdade romanesca. Os dois termos estão interrelacionados: o primeiro é o fato de que o protagonista está imerso em uma relação triangular, sempre desejando o que um modelo que admira também deseja, chegando a ponto de acreditar que é um indivíduo original justamente por desconhecer que está nesta relação (claramente, o que acontece é o contrário); o segundo termo é o ponto final do processo de conversão ao real que o mesmo protagonista sofre, por inúmeras razões (Girard cita, entre outras, a morte de um ente querido, a desilusão amorosa ou a conversão religiosa), e descobre que nunca foi um indivíduo original, que age sob a imitação dos outros e, por isso mesmo, recupera a verdadeira individualidade, alcançando a unidade do ser que os outros o impedem de conquistar. Holden tem a intuição desta unidade no momento em que, quase no final do romance, deixa quebrar o disco de vinil que iria dar à sua irmã Phoebe. Logo em seguida, conta a ela a parábola sobre o apanhador no campo de centeio, que salvaria as crianças que são jogadas no abismo ao lado. Enquanto narra, identifica-se com o próprio apanhador, mas isso ocorre por poucos momentos. É uma legítima epifania, no sentido estritamente joyceano do termo, e por isso mesmo dura o necessário para que tanto o personagem (que também é o narrador) e o leitor tenham a mesma descoberta. O encanto duradouro de O Apanhador não está no fato de que os desajustados da sociedade o adoram; está no fato de que leitor e personagem fazem a mesma jornada, identificam-se, passam pela mentira romântica, atingem a verdade romanesca e, de brinde, vêem um vislumbre do que podem ser para os seus próprios futuros. Holden pode resmungar o tempo todo que não se pode confiar num policial vestido com uma capa de chuva, mas algum dia terá de confiar em alguém — e o leitor pensa o mesmo enquanto lê a história. Contudo, epifanias, sejam joyceanas ou não, não duram para sempre — e Salinger tinha uma dolorosa percepção disso. É aqui que O Apanhador se mostra como um livro mais complexo, cheio de nuances — e igual processo acontece no restante da curta obra salingeriana. O dilema da unidade do ser que percebemos em Holden é resolvido precariamente, mas um outro permanece, muito mais profundo, e isto será acentuado, por exemplo, no futuro drama da família Glass: o problema da comunicação substancial. Em um mundo dominado por parâmetros democráticos — lembrem-se de que Salinger surge em 1951, uma época em que a democracia americana era a prova maior do único sistema político que funcionava no Ocidente –, a tensão entre as pessoas aumenta de forma considerável. Elas podem ter um rádio, um telefone, uma TV, mas simplesmente não conseguem mais conversar como seres humanos. Há sempre algum interesse, alguma agenda oculta, algum miasma de niilismo em cada palavra que alguém pronuncia para outra pessoa. A igualdade entre os seres humanos não se dá com a garantia de direitos comuns e sim com a possibilidade de que cada um possa praticar o mal contra seu semelhante. A conseqüência concreta é que o preço do progresso é a morte do espírito. A comunicação substancial só pode acontecer quando as pessoas envolvidas estão dispostas a se abrir para algo além delas e maior do que todas. Em um mundo democrático, esta comunicação será sufocada por outras duas: a pragmática, que quer apenas comunicar o que seria importante no dia-a-dia, sem se importar com outras interpretações (ou então as manipulando ao seu bel prazer), e a intoxicante, que deseja impregnar o seu alvo — no caso, o cidadão que vive em uma democracia ocidental — de divertissements, de diversões que entorpecem a consciência e o fazem perder, sem qualquer esforço, a unidade do ser. Nesta situação, só a literatura pode recuperar o que está prestes a ser perdido. Mas, no caso de J.D. Salinger, isso não bastava. Ele precisou de algo mais, de algo que o fazia se movimentar em uma estratégia inusitada, não só para o leitor, mas também para si mesmo. E isto é algo que só o silêncio pôde lhe dar. Regra No 2: Cuidado com o entusiasmo e o amor. Ambos são temporários e tendem a desaparecer. Este escriba que vos fala aposta que a tal estratégia citada acima não foi descoberta de uma vez e nem por acaso. Neste caso, os dados biográficos são claros: Salinger ficou muito assustado com o sucesso proporcionado por O apanhador no campo de centeio. E ele fez o que qualquer pessoa sã faria: sumir por algum tempo. O que ninguém sabia é que faria isso pelo resto de sua vida. Contudo, aqui vai uma pergunta: será que ele sumiu realmente? E o que significa sumir, nos nossos tempos? Significa que se trata de um insulto para nossas sensibilidades democráticas. Afinal, quem tem o direito de sumir quando é o dever do artista mostrar-se aberto aos seus leitores? Felizmente, Salinger não pensava assim — e resolveu mostrar o que pensava sobre isto através de seu personagem mais enigmático e, para muitos, mais perturbador: Seymour Glass. Ele surge pela primeira vez no conto Um dia perfeito para os peixes-banana, que abre Nove Histórias, um volume magnífico de pequenas pérolas que colocaria Jerome David lado a lado de mestres da narrativa curta como Henry James e John Cheever (talvez o único contemporâneo que pode alcançá-lo em qualidade e intensidade). O estilo no qual o conto é construído — cheio de diálogos de segundas intenções, de situações oblíquas, que nunca se explicam, até que se resolvem em um final inesperado — é de uma displicência enganosa; nunca sabemos o que Seymour realmente pensa (exceto quando conversa com a pequena Sybil, uma conversa que o faz cair literalmente na perdição) e, quando pensamos ter um vislumbre disso, enganamo-nos profundamente. É como se Salinger antecipasse a teoria de Ricardo Piglia sobre as duas histórias que coexistem em um conto perfeito (ou melhor: talvez tenha sido Piglia quem imitou Salinger descaradamente e sem aviso): a mensagem cifrada está lá, para os poucos que a percebem, para os poucos que podem notar, por trás das falas de Sybil, da insolência de Holden Caulfield e do disco quebrado de Phoebe: a inocência chegou ao seu fim definitivo. Porque é isso o que faz Seymour Glass cometer seu ato derradeiro: ele sabe que o mundo esmagou qualquer possibilidade de se ter uma mínima unidade do ser. Afinal, apesar de seu nome — see more glass, como diz a pequena Sybil (por sua vez outro nome que carrega todo um antigo simbolismo) — a sua visão aguda lhe permite ver somente as sombras da existência. Como um Eclesiastes pós-moderno, carregado de spleen, Seymour tem muita sabedoria, muito desgosto, e, quanto mais conhecimento, mais sofrimento; toma cuidado com coisas passageiras como o entusiasmo e o amor, mas é palpável que, alguma vez na vida, sentiu tudo isso e sofre uma terrível nostalgia de não poder recuperar essas emoções. Este é também o tema secreto que penetra nos contos restantes de Nove Histórias: cada personagem perdeu algo ou alguém, sente a sua ausência, busca repeti-la a qualquer custo e, não conseguindo, termina em uma das inúmeras variações do desespero humano. Para Salinger, não há mais ser, não há mais a abertura da alma individual para uma comunicação substancial; todos estão intoxicados por algo que não sabem reconhecer, por algo que os devora por dentro. Bem-vindos ao mundo tenebroso da terra devastada, é o que parece nos dizer. Aqui, os homens que conseguem ver alguma coisa estão fadados a morrer, não importa como; eles não se adéquam ao mundo e, por isso, devem ser eliminados. Quem quer ir contra essa corrente, sabe que não há escapatória. Regra No 3: Se alguém lhe perguntar se você se importa com os problemas do mundo, olhe bem para a pessoa que fez esta pergunta e ela jamais fará isso novamente. Esta atitude que Kierkegaard não hesitaria chamar de “o pecado mortal” encontra sua solução em Franny & Zooey, o livro sublime que ninguém sabe se é um pequeno romance ou se são duas novelas ligadas por um fio tênue de sentido. Em Nove Histórias, todas as conversas entre os personagens terminam em danação para cada um deles; em Franny & Zooey é justamente uma longa conversa que será a salvação da irmã caçula de Seymour Glass, a Franny do título. Mas Salinger não mostra todas as cartas do jogo: como um bom estrategista ele quer que você pense que o mundo continua o mesmo inferno de seu livro anterior. A abertura da primeira parte, Franny, é o exemplo consumado de que estamos lidando com um mestre da técnica de narrar uma história; a única coisa a se fazer é nos render aos seus encantos. Um trem chega em uma estação e um rapaz espera por uma moça. A partir daí, o rapaz — um janota metido a intelectual chamado Lane — e Franny vão mostrar a quem quiser perceber quais são as fraturas minúsculas que destroem um relacionamento, independentemente da idade ou da época. Lane não pára de falar sobre coisas que não interessam mais a Franny — e ela tem sua mente obcecada apenas para a oração que encontrou em um livro que antes estava em posse de seu irmão suicida, Seymour. Não se trata de um livro qualquer, mas sim dos Relatos de um Peregrino Russo, verdadeiro monumento da ortodoxia eslava, e a prece é nada mais nada menos do que a do bom pecador, que repete ad infinitum “Jesus Cristo tende piedade de mim pois sou um pecador” até que se atinja um estado que muitos classificariam como místico. Eis aqui uma das amostras da ironia de Salinger: este estado é alcançado no ambiente de um minúsculo banheiro em uma lanchonete na Nova Inglaterra. Franny está agachada no chão do banheiro, suas mãos suam, e não sabemos a razão do fato de sair às pressas da mesa com Lane. Estaria ela grávida? Estaria ela enlouquecendo? A única coisa que ela sabe fazer é ter o livro do falecido irmão em mãos e recitar entre lábios a oração do bom pecador. Desmaiar em plena lanchonete e deixar Lane envergonhado é a conseqüência natural desses fatos. Na segunda parte do livro, Zooey, encontramos Franny em repouso na casa da família Glass. Sua mãe, Bessie, não sabe o que fazer com a filha; afinal, depois de ter vivido o suicídio de Seymour e a morte de Walt na Segundo Guerra, ela está apavorada com o que pode acontecer; o pai, Les, ninguém jamais sabe onde está; Zooey prepara-se para uma carreira de ator e sabe que a crise existencial da irmã se deve ao fato de não ter superado o suicídio de Seymour; Waker tornou-se um monge cartuxo e mal sabe o que acontece com sua família; Boo-Boo é uma garota de quatorze anos que desconhece o que se passa ao seu redor; e Buddy é o humilde narrador desta história toda, o único que tenta encontrar um sentido no meio de uma família tão disfuncional e que é facilmente identificado como alter-ego de J.D. Salinger. Tal palco de neuroses é a amostra do que acontece com qualquer um que se sinta afetado pelo suicídio de alguém querido. Seymour é um fantasma que assombra a vida de sua irmã Franny — e será justamente a missão de Zooey libertá-la desta influência. Aqui, o problema da comunicação substancial será levado às últimas conseqüências; o que se discute não são mais coisas triviais — como Lane fazia com Franny no início do livro –, mas sim a única coisa importante, como diria uma das passagens do Evangelho. De certa forma, a conversa entre Franny e Zooey, que ocorre em um final de tarde melancólico nesse apartamento excêntrico próximo ao Central Park, é uma discussão sobre as corrupções pelas quais passou o Cristianismo. Franny tem a visão de um Cristo encharcado na mentira romântica; Zooey tenta convencê-la do contrário, de que o Cristianismo não veio para lamentar os mortos, mas justamente livrá-los dos tormentos da vida e da própria morte — e é engraçadíssimo ouvir as palavras sarcásticas de Zooey contra São Francisco e suas variações escatológicas, a amostra de uma religião que se preocupa apenas com os pobres de dinheiro quando deveria se preocupar também com os pobres de espírito. Afinal, se sua irmã quer resolver os problemas do mundo, que antes de tudo olhe para dentro de si mesma. A experiência mística que Franny vivenciou pode ser classificada como um sintoma de neurose psíquica, porque ela não está interessada na vida do espírito per si; e, por isso, como um Sócrates da Quinta Avenida, Zooey a faz ver que o espírito vive nas situações simples do dia-a-dia, como, por exemplo, no homem que cai na rua e logo depois se levanta e, em uma das passagens mais memoráveis, afirma que tudo o que fazemos neste planeta é para e pela Senhora Gorda. O símbolo da Senhora Gorda — um recurso que Zooey é obrigado a emprestar do falecido Seymour — é o artifício de como a comunicação substancial se estabelece na alma de uma pessoa. E ela só pode acontecer quando a única coisa importante não pode ser mais citada com todas as letras; porque quem a Senhora Gorda representa foi banalizado pela destruição da unidade do ser neste mundo de prazeres democráticos, e ele deve ser renomeado para recuperar sua verdadeira expressão; e quando isto ocorre, deve-se reconhecer que, mesmo ganhando um novo nome, ele continuará a ouvir em silêncio as perguntas de Pilatos sobre as acusações que lhe fizeram, uma vez que todos parecem atacá-lo sem razão. Franny compreende o que o irmão quis fazer ao falar da Senhora Gorda e, talvez pela primeira vez após a morte de Seymour, sente aglutinar os pedaços que estavam dispersos dentro dela, fazendo assim surgir uma amostra do que pode ser a sua unidade do ser, se persistir na jornada com a revelação que lhe foi dada. Os últimos momentos de Franny & Zooey mostram Franny deitada, em paz, e a luz do sol da tarde caindo sobre sua face adormecida, provavelmente um sinal de que o próprio Salinger teria encontrado algum sossego. Mas, como veremos, isso não passava de um engano. Regra No 4: Nunca diga o seu verdadeiro nome. O engano é que Salinger só conseguiu alguma paz quando parou definitivamente de dar ouvidos para tudo aquilo de que o acusavam. E aqui começa a lenda e os fatos nos abandonam para sempre. Ele pára de dar entrevistas, de tirar fotos, de fazer aparições públicas. Muda-se para Cornish, em New Hampshire, para uma casa enorme bloqueada por um muro com arame farpado. A população da pequena cidade o protege como uma preciosidade. Ninguém sabe com quem vive, se com a mulher ou com os filhos. Afirmam que é divorciado; depois afirmam que gosta de menininhas, no melhor estilo Humbert Humbert. Uma delas, querendo ser escritora, lança as memórias do seu período com o misterioso escritor e diz aos quatro cantos do mundo que ele gosta de beber a própria urina e que escreve compulsivamente, guardando os manuscritos em um cofre para serem lançados após a sua morte. Como se não bastasse, uma de suas filhas publica outro depoimento, afirmando que o pai realmente não bate muito bem da cabeça; além dos drinks de urina, havia reuniões com jovens tão estranhos quanto Holden Caulfield; havia a cinefilia; havia a paranóica luta por sua privacidade, em que chegou a agredir um fotógrafo em um supermercado e a processar um jornalista britânico que queria escrever a sua biografia definitiva. E, claro, havia os escritos. Saberíamos mais sobre Seymour Glass e sua família? Voltaríamos a ver Holden?. Não, nada disso foi explicado enquanto Jerome David estava vivo. Uma das lendas mais engraçadas é a de que ele teria voltado ao mundo literário, desta vez com outro nome, um tal de Thomas Pynchon que escrevia romances gigantescos como V. (1963) e O Arco-Íris da Gravidade (1974), justamente para compensar as minimalistas peças de ourivesaria que lhe deram fama e tormento. Depois, o próprio Pynchon provou ser uma pessoa real, sobre quem inventaram milhares de lendas: disseram que seu nome era na verdade Wanda Tinasky, e dez anos depois, houve a suspeita de que seria ninguém menos do que o Unabomber. Em outras palavras: se você for um verdadeiro artista, nunca diga o seu verdadeiro nome. Ou então talvez você nem precise fazer isso. Basta desaparecer. E como fazer isto? Por acaso Salinger desapareceu em Cornish? As fotos de Lillian Ross mostram o contrário. Provam que o homem podia ser visto no parque ao lado, dirigindo um carrinho de bebê. De modo que ele talvez não tenha desaparecido de forma alguma. Talvez tenha encontrado outra forma de liberdade através de uma estratégia inusitada: o silêncio. Regra No 5: Se alguém lhe pedir para olhar dentro de si, não o faça. Contudo, este mesmo silêncio pode surgir em uma avalanche de palavras aparentemente sem nexo. Os teóricos literários deram um nome para a técnica de enganar o leitor: digressão. O primeiro a usar o artifício de forma sistemática — o escriba que vos fala sabe que há um paradoxo embutido nesta afirmação mas promete que logo tudo fará sentido — foi Laurence Sterne, que com o seu Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman (1759–1767). Mas, na literatura americana do século XX, quem fez a mesma coisa e levou-a aos píncaros estratosféricos da alucinação foi Salinger, com duas pequenas historietas sobre a família Glass: Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira e Seymour: uma introdução. Esta família é mais do que um grupo de personagens queridos; é uma obsessão, a prova de que Salinger quer mostrar algo que o leitor ainda não percebeu. O uso da digressão nestas duas histórias é mais do que uma técnica: é a forma encontrada por seu criador para transmitir uma mensagem que, de outra maneira, não conseguiria ser transmitida e compreendida. Qual é a mensagem? Eis a piada: ninguém sabe, justamente porque está enterrada em uma montanha de palavras. Em Carpinteiros, temos Buddy Glass finalmente contando ao leitor o que aconteceu no dia do casamento entre Seymour e Muriel, quando o primeiro resolveu sumir sem aviso e deixou a família da noiva desesperada. O importante aqui são as anedotas, os detalhes, os toques satíricos de como Salinger descreve os futuros sogros de Seymour; eles são pessoas que querem a sociedade ao seu dispor, como se todas as outras pessoas estivessem sob seu domínio. Será que Seymour já percebia o que o futuro lhe reservava? Buddy não responde em afirmativo, mas não hesita em deixar a pista para o leitor. Será este estilo oblíquo e dissimulado do irmão mais velho que tomará a forma (ou, no caso, a não-forma) na história Seymour: uma introdução, em que o mesmo Buddy tenta escrever o prefácio de um livro de poemas que o irmão deixou para publicação póstuma. Quem era Seymour? Nem Buddy sabia isso — e é provável que Salinger também não soubesse. A técnica da digressão é uma maneira de impedir que o personagem fique transparente para o escritor. Afinal, quando sabemos quem é exatamente a criação que temos em mãos, ela deixa de ter o seu prazer, perde o seu sentido de mistério. É provável que Salinger tenha usado a digressão para que ele mesmo não tivesse muita certeza sobre quem era Seymour para si mesmo. Afinal, quando olhamos para nós mesmos, tudo pára de ter significado. Os enigmas da existência serão resolvidos em um sistema auto-suficiente no qual sempre teremos a chave. Mas o artista não quer isso, não é esta a sua intenção; ele precisa viver no reino do enigma, como um monarca do exílio, abraçando o caos desde que o caos também o aceite. A digressão é mais do que um artifício literário; é uma forma de sobrevivência neste mundo sem misericórdia. Regra No 6: Nunca faça nada que a pessoa ao seu lado não possa entender. Muitas vezes, este mesmo mundo pode parecer um acampamento de verão para crianças de oito anos. E quando, entre essas crianças, existe uma chamada Seymour Glass e que resolve se corresponder com seus pais através de cartas longas e aparentemente sem sentido, talvez tudo fique ainda mais nebuloso. Em Hapworth 16, 1921, o último escrito publicado de Salinger — e jamais visto no formato livro –, temos um vislumbre do que seria a vida interior do pequeno gênio da família Glass: a falência da linguagem reproduzida em um refinamento paradoxal (afinal, como uma criança de oito anos pode escrever tão bem assim?), as digressões que disfarçam um tormento existencial que ainda não encontrou maneira de se expressar (e, como sabemos, jamais encontrará) e a arrogância juvenil que, na verdade, protege a destruição da unidade do ser que já borbulhava na infância. É esta destruição que Salinger insinua nos dois trechos em que não sabemos se os críticos repararam ou não. Talvez ali esteja a chave da encruzilhada. O primeiro trecho é uma frase que Seymour comenta sobre um poema que tentou escrever no acampamento; ele não o mostrará a ninguém porque “este será o melhor poema que jamais escreverá”. Ninguém saberá como será a obra porque o simples fato de que ele não quer escrevê-la o transformará no próprio poema. Um artista não precisa mostrar o que fez; a sua vida interior é tão rica, a unidade do ser é tão evidente para quem quiser ver, que se a pessoa ao seu lado não entender o que isso significa, a conseqüência prática é fazer absolutamente nada. O segundo trecho é um longo parágrafo em que Seymour praticamente grita em todas as letras que atingiu a percepção de que Deus ultrapassa quaisquer categorias históricas e humanas. Uma revelação e tanta para quem tem apenas oito anos, sem dúvida. Contudo, Salinger não hesita em tirar sarro desta “revelação”, ao citar logo em seguida os livros que Seymour quer que seus pais tragam ao acampamento enquanto se recupera de uma perna quebrada. Saber que Deus está além de qualquer definição implica uma paródia da educação clássica que mistura Tolstoi, livros de História, de medicina, Lao Tse, Hinduísmo — enfim, essa multiplicidade em que é nítida a ausência de uma unidade, de um ser que amarre essas contradições e permita o pequeno gênio viver em um mundo que não lhe pareça uma ameaça constante. Mas será que Salinger estava realmente contando uma piada ou expressava uma angústia íntima disfarçada de understatement? Depois de seu sumiço, é provável pensar na última opção. Dizem que, nos anos seguintes, ele continuou a escrever apenas para si mesmo e guardou os manuscritos em um cofre fechado a sete chaves. Como tudo na vida e na obra de Jerome David, temos de colocar esta afirmação no benefício da dúvida. Temos de também supor que tudo o que ele queria dizer já estava dito — e que o que temos publicado em quatro livrinhos de menos de duzentas páginas cada, mais um pequeno conto escrito como se fosse uma carta, é tudo aquilo que sua ascese interior conseguiu exprimir e ceder para este animal ingrato, o leitor. Regra No 7: Nunca crie nada: você será mal-interpretado, e isto o acorrentará e o perseguirá pelo resto da sua vida. Afinal de contas, o que se pode fazer com este animal em um mundo em que a simples comunicação não pode mais acontecer, pela simples razão de que não há mais uma base comum de compreensão da existência²? E o que significa viver em busca de uma unidade do ser? Antes havíamos a filosofia grega, o Velho Testamento, o Novo Testamento, os escritos orientais, uma montanha de dados e meditações que permitiam um apoio para todos nós, uma forma de nos comunicarmos sem destrinchar o que realmente significa cada palavra. Agora, temos apenas a incerteza, a indecisão, a escuridão que acompanha a todos nós como um cão fiel. Mas não seria a escuridão o material no qual o artista trabalha para continuar a sua caminhada? Eis a loucura da arte que tanto fascinava alguém como Henry James: o escritor faz o que pode, não o que deve, e, quando uma coisa se confunde com a outra, ou temos monumentos à insanidade ou as revelações de um uno que só a paciência e o silêncio do ourives podem criar. J.D. Salinger escolheu a liberdade do silêncio não para construir o seu mito — que, como sabemos, nunca foi real porque você poderia encontrá-lo no parque ao lado, caminhando com um carrinho de bebê –, mas para preservar um pouco da inocência que deveria existir entre o artista e o seu público. Ele se pergunta na epígrafe de Carpinteiros, levantem alto a cumeeira se ainda existiria alguém que somente lê uma história e depois a deixar para trás, talvez para viver a sua própria vida. Uma questão da qual todos já sabem a resposta: É claro que não. Há um abismo de incompreensão entre o artista e o público, e a única razão pela qual o primeiro continua o seu trabalho é que ele não escreve para o tempo presente e sim para as gerações futuras. Só assim ninguém o poderá interpretar de forma equivocada, o acorrentará e o perseguirá pelo resto de seus dias. Contudo, ao mesmo tempo, como o artista vive na sua própria época, no seu próprio presente, uma atitude como esta nos permite fazer outra pergunta: Quando a unidade do ser será recuperada se este impasse continuar? A resposta, sem dúvida, existe, mas ela estará envolta no silêncio que nós não queremos ouvir. Quem quiser colaborar com o meu trabalho, além do valor da assinatura desta newsletter pessoal, pode me ajudar por meio do pix: martim.vasques@gmail.comE quem quiser apertar o botão abaixo só para fazer a minha felicidade - e manter essa newsletter de modo mais profissional, be my guest: 1 Estes mesmos temas continuam na literatura norte-americana atual. Vejam, por exemplo, Indignação, de Philip Roth, um romance que, aliás, guarda várias semelhanças com O Apanhador. 2 Ou como diria Elias Canetti: “Compreendi que pessoas falam umas com as outras, mas não se entendem; que suas palavras são golpes que ricocheteiam nas palavras dos outros; que não há nenhuma ilusão maior do que achar que a linguagem seja um meio de comunicação entre as pessoas. Falamos com o outro, mas de forma a que ele não nos entenda. Continuamos falando, e ele entende menos ainda. Berramos, ele berra de volta; a ejaculação, que na gramática tem uma existência pequena, se apodera da língua. Tal qual bolas, as exclamações vão e voltam, se chocam e caem por terra. Raramente alguma delas penetra no interlocutor, e quando isso acontece, é de forma um tanto equivocada.” You're currently a free subscriber to Presto. For the full experience, upgrade your subscription. |
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sexta-feira, 1 de agosto de 2025
A Liberdade Do Silêncio
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