Entre Gelo e Inferno: A Literatura de Varlam ChalámovA obra de Chalámov é assustadora e grandiosa, revelando um destino que teria destruído qualquer outro homem.Entre Gelo e Inferno: A Literatura de Varlam Chalámov O jovem Varlam Chalámov nutria grandes ambições como poeta. Em uma carta de 1964, escreveu: “Escrevo poesia desde a infância e, na juventude, queria ser Shakespeare ou, pelo menos, Lermontov. Estava convencido de ter essa força”. Aos 17 anos, filho de um sacerdote ortodoxo de Vologda, no norte da Rússia, ele partiu para Moscou em 1924, determinado a “alcançar o céu”. A cidade oferecia oportunidades para participar da revolução que prometia um novo mundo, tanto politicamente quanto poeticamente, inspirado pelos poetas vanguardistas de esquerda. No entanto, essa euforia logo deu lugar à frustração. Líderes da Frente de Esquerda das Artes (LEF), como Vladimir Maiakóvski e Óssip Brik, questionavam o papel da poesia em tempos de revolução. Chalámov temia que a poesia perdesse espaço diante das mudanças políticas. Paralelamente, suas atividades políticas tiveram consequências. Ele foi expulso da Universidade de Moscou por esconder sua origem religiosa e, em 1929, preso por participar de uma gráfica clandestina. Condenado a três anos por “agitação e propaganda contrarrevolucionária”, teve seu primeiro contato com o sistema Gulag (rede de campos de trabalho forçado na União Soviética, usada para aprisionar milhões de pessoas, incluindo dissidentes políticos, criminosos comuns e minorias), sendo enviado a um de seus campos no norte da Rússia. Na Rússia stalinista, poucas acusações eram mais graves do que a de “atividades trotskistas contrarrevolucionárias”, que frequentemente resultavam em prisão em Kolimá, uma das regiões mais brutais do sistema Gulag, localizada no extremo nordeste da Sibéria, próxima ao Círculo Polar Ártico. Kolimá simbolizava a repressão stalinista, servindo para explorar recursos, punir opositores e isolar dissidentes, sendo para muitos uma sentença de morte. Chalámov passou quase duas décadas em Kolimá, trabalhando até 16 horas por dia em minas de ouro e carvão, enfrentando subnutrição e doenças. Sobreviveu a uma experiência que destruiu centenas de milhares, e muito do que sabemos sobre Kolimá vem de seus escritos. Seus Contos de Kolimá, amplamente reconhecidos como uma das obras mais impactantes sobre o Gulag, abrangem seis volumes, incluindo ensaios e memórias pessoais, retratando a desumanização e brutalidade do regime. Em maio de 1943, ainda preso, Chalámov foi denunciado por “agitação trotskista e derrotista” ao afirmar que o escritor Ivan Búnin, exilado em Paris, era um “clássico da literatura russa”. Condenado por um tribunal militar a mais dez anos de reclusão, ele creditava sua sobrevivência a circunstâncias fortuitas, como a chance de fazer um curso de enfermagem no Hospital Central da região, graças à intervenção do médico A. I. Pantiukhov. Trabalhando como enfermeiro na ala de cirurgia, conseguiu evitar temporariamente o trabalho extenuante e fatal nas minas. Sua pena terminou em 13 de outubro de 1951, mas ele permaneceu como enfermeiro a fim de juntar dinheiro, retornando a Moscou em 12 de novembro de 1953. Esse retorno à vida civil marcou o início de sua produção literária. Para Chalámov, viver e escrever eram inseparáveis. Escrever não era uma fuga, mas um compromisso com a verdade, usando a literatura como testemunho contra o esquecimento imposto pelo Estado. As quase duas décadas em Kolimá moldaram sua visão do ser humano, reduzido a um ser biológico, um animal, sob condições desumanas de frio extremo, trabalho brutal e violência constante. As conquistas culturais e civilizatórias pareciam insignificantes diante de tamanha brutalidade. O grande desafio de Chalámov era descrever os horrores dos campos sem perder a autenticidade literária. Escrever sobre Kolimá era revisitar a morte, confrontar o leitor com uma carga emocional intensa, mas ele temia diluir a força do testemunho com “excesso de palavras”. Em resposta, propôs uma ruptura com temas e personagens tradicionais, rejeitando o realismo clássico e sua inclinação moralista, especialmente da tradição russa. Nos Contos de Kolimá, Chalámov inovou ao incorporar técnicas poéticas de vanguarda, como o princípio da montagem. Em vez de aprofundar o estudo psicológico dos personagens, ele elevou experiências individuais a um nível universal. As pessoas surgem, desaparecem e reaparecem em outras narrativas, às vezes sob novas perspectivas. Realidade e ficção se mesclam, criando uma estrutura fragmentada, com motivos e episódios que se repetem sob ângulos diferentes. Os contos revelam a arbitrariedade e imprevisibilidade da vida em Kolimá. Chalámov acreditava no poder da palavra literária para “despertar o sentimento” no leitor, expondo o que ocorre quando o ser humano é reduzido a condições mínimas de sobrevivência. Como ressalta o escritor italiano Roberto Saviano no prefácio de A Margem Esquerda (Vol. 2 dos Contos de Kolimá), a obra de Chalámov revela a essência humana e sua capacidade de resistir. A cinquenta graus abaixo de zero, cercado por pessoas que esperam sua morte para roubar suas roupas, o homem luta para preservar sua humanidade. Chalámov via seus escritos como uma afirmação do bem. “Meus escritos são a afirmação do bem sobre o mal”, dizia. O sofrimento e as crueldades que descreve revelam o potencial de redenção da natureza humana, mostrando força e beleza mesmo no horror. Ele se orgulhava de nunca ter traído outro ser humano para se beneficiar, ressaltando a nobreza dos pequenos gestos no inferno cotidiano do Gulag, o “Auschwitz sem fornos”. Como uma personagem de Vassili Grossman diz: “Eu não acredito no bem. Eu acredito na bondade”. Para Chalámov, a bondade se manifestava nos olhares e momentos partilhados, sendo uma realidade humana tangível. Embora muitos contos sejam ambientados nos campos, alguns exploram outras fases da vida dos prisioneiros, como os julgamentos e a vida pós-libertação. Um dos mais tristes, A Cruz, narra a história de um padre cego cuja esposa, para poupá-lo, esconde o fato de que a casa onde viveram por quarenta anos está sendo dilapidada: em dias alternados, policiais vêm e confiscam os móveis, e, por fim, o baú que guarda o último símbolo de sua fé – uma cruz peitoral. A relação entre Varlam Chalámov e Aleksandr Soljenítsin Varlam Chalámov e Aleksandr Soljenítsin são dois dos mais importantes escritores a relatar os horrores dos Gulags soviéticos, embora com visões e estilos muito diferentes. Soljenítsin, premiado com o Nobel de Literatura em 1970, é conhecido por Arquipélago Gulag, uma obra monumental sobre o sistema prisional soviético. Chalámov, por sua vez, nunca recebeu reconhecimento em vida: sua poesia permaneceu inédita e sua prosa, circulando apenas em samizdat, só foi publicada na União Soviética após sua morte, nos anos 1980. Seus Contos de Kolimá, escritos entre 1954 e os anos 1970, oferecem uma abordagem mais sombria, rejeitando a ideia de redenção pelo sofrimento. A publicação de Um Dia na Vida de Ivan Denisovich por Soljenítsin, em 1962, foi um marco ao expor a realidade dos campos de prisioneiros soviéticos, aproveitando-se da abertura proporcionada pelo discurso de Khrushchev, em 1956, que condenava os crimes de Stalin. No entanto, para Chalámov, a vida no campo descrita por Soljenítsin parecia leve diante de suas experiências em Kolimá. Mesmo assim, ele viu valor na obra, pois acreditava que ajudaria a reconhecer o sofrimento dos prisioneiros. Diferente de Soljenítsin, que se tornou um dissidente famoso, Chalámov seguiu escrevendo sobre a brutalidade dos Gulags com uma visão mais pessimista. Chalámov via o sofrimento nos campos como algo que destruía a humanidade, enquanto Soljenítsin acreditava que ele poderia levar à purificação moral. Para Chalámov, os prisioneiros perdiam toda a dignidade, e ninguém saía espiritualmente fortalecido dos Gulags. Sua narrativa rejeitava o realismo tradicional de Soljenítsin, adotando uma “prosa física” que refletisse a brutalidade da vida nos campos. Essas diferenças filosóficas e literárias logo distanciaram os dois. Chalámov rejeitava as convenções do realismo russo, enquanto Soljenítsin criticava a ausência de personagens com um passado claro nas obras de Chalámov. Assim, enquanto Soljenítsin consolidava sua fama, Chalámov permaneceu desconhecido até suas publicações póstumas. Crítica à Romantização do Crime Além disso, Chalámov rejeita a ideia de que o sofrimento extremo, como o imposto nos Gulags, possa trazer redenção espiritual ou moral. Embora não mencione diretamente, sua crítica atinge Soljenítsin, cujo Arquipélago Gulag sugere que a resistência nos campos poderia levar à purificação moral. Chalámov refuta isso, afirmando que o sofrimento extremo apenas destrói. Para ele, os campos, com seus criminosos – protegidos pelo regime como ‘amigos do povo’ –, eram lugares onde a moralidade se desintegrava, e sobreviver significava perder completamente a humanidade. Em Ensaios sobre o Mundo do Crime (Vol. 4), Chalámov critica a romantização do criminoso comum na literatura, especialmente em autores como Victor Hugo e Dostoiévski. Ele rejeita a noção de que o crime ou a vida criminosa envolvam grandeza, moralidade ou redenção. Para Chalámov, os criminosos comuns, os blatares, não são heróis ou anti-heróis, como retratados na ficção, mas o que há de mais degradante na natureza humana. Ele chega a afirmar que eles “não são humanos”. Chalámov critica a profundidade psicológica e moral que Dostoiévski confere a personagens criminosos em obras como Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov, pois, para ele, isso não reflete a realidade brutal que viveu. Ele via essa abordagem como uma distorção perigosa, que mascarava a falta de ética e a violência dos criminosos reais. A Realidade Criminosa no Gulag A convivência de Chalámov com criminosos no Gulag moldou sua visão de que esses indivíduos não eram heróis trágicos ou rebeldes, mas agentes de brutalidade, egoísmo e degradação. Ele os via como seres que recorriam à violência e à traição para sobreviver em um ambiente sem lei. Para Chalámov, a romantização desses criminosos na literatura traía a verdade que ele testemunhou nos campos. Ele os descrevia como profundamente pervertidos, movidos por interesses egoístas e pela busca de prazeres imediatos, sem qualquer senso ético ou moral. Em Kolimá, Chalámov ilustra o perigoso fascínio de muitos intelectuais marxistas pelos criminosos, ao verem no crime uma resistência revolucionária contra o “sistema capitalista”. Um exemplo é um estudioso de Marx, outrora influente, que, no campo, acaba reduzido a capacho de um bandido, passando seus dias massageando os pés do criminoso. Chalámov defendia que a literatura precisava ser fiel à realidade, especialmente ao tratar do crime e dos horrores do Gulag. Sua crítica à romantização do crime é, em essência, uma defesa da literatura de testemunho, que revela a degradação humana e a brutalidade dos campos. Nenhum outro autor descreveu com tanta precisão os horrores de Kolimá e a sistemática “dissolução das almas humanas” nos campos de trabalho forçado. No entanto, na Rússia de Putin, falar sobre o Gulag tornou-se quase proibido. Em meio a uma narrativa nacionalista, os crimes brutais de Stalin são raramente mencionados. O Arquipélago Gulag, de Soljenítsin, não é mais ensinado nas escolas, enquanto Stalin é exaltado como o grande vencedor sobre a Alemanha nazista, e monumentos em sua homenagem voltam a ser erguidos. Mesmo assim, os campos de trabalho forçado permanecem um capítulo sombrio não apenas da história russa, mas também da história humana do século XX. Chalámov retratou esse mundo de forma incisiva. Sua obra é assustadora e grandiosa, revelando um destino que teria destruído qualquer outro homem. Suas histórias servem como um guia para uma vida mais consciente e autêntica – um verdadeiro manual de sobrevivência. Como afirma Roberto Saviano, Chalámov ensina a ser humano apesar de tudo, sem sucumbir ao medo. Afinal, para Chalámov, o medo é um sentimento vergonhoso e degradante, que humilha o homem. Ao explorar sua obra, não só se revela a brutalidade dos campos soviéticos, mas também a impressionante transformação artística que Chalámov realizou a partir desse inferno glacial. Karleno Bocarro é escritor e tradutor. Autos dos romances Escrita de Obsessão, As Almas que se Quebram no Chão e O Advento. Traduziu obras de Viktor Frankl, Kafka, Bernanos, Nietzsche, Riboulet, Schlattner, M. Raymond, von Mises e Jacob Burckhardt. É graduado em história, ciência da cultura e filosofia pela Universidade Humboldt de Berlim, com mestrado em filosofia pela mesma instituição. 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quarta-feira, 17 de setembro de 2025
Entre Gelo e Inferno: A Literatura de Varlam Chalámov
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