Obrigado pela sua leitura! 1. O que significa fazer parte da imprensa? – foi o que me perguntei durante anos. Após muito tempo, cheguei a uma resposta para tal questão. Ser da imprensa significa, sobretudo, ser alguém que gosta de usar máscaras – enfim, ser um dissimulado. Esta é a principal característica de quem pretende fazer parte da intelligentsia brasileira, pelo menos desde os tempos de Machado de Assis. Não se pode acreditar em ninguém desse meio, de jornalistas a intelectuais, passando pelos influenciadores que hoje atormentam a nossa cabeça com assuntos completamente irrelevantes. Vivem todos sob o signo da impostura. É uma espécie de magia negra psíquica. Um dos poucos que escapou dessa atitude foi Paulo Francis. Enquanto vivo, sua sinceridade acachapante, tanto no estilo de escrita como na hora de falar, o transformou em um maldito – o que só piorou após seu falecimento, pois, para a geração seguinte (ou seja: a minha), seu modo de ser tornou-se um modelo de admiração, mas, ao mesmo tempo, um obstáculo que nos irritava inconscientemente e, portanto, nos causava inveja. Não fiquei imune a este tipo de comportamento. Afinal, quando jovem, também desejava ser da imprensa e queria ter a mesma liberdade de um Francis. Daí que, por exemplo, escrevi essas idiotices, lá nos idos de 2002:
Reparem como eu transpirava a imprensa por todos os meus poros. O que significa que, afinal, eu pensava como um mentiroso compulsivo. Achava Paulo Francis alguém “engraçado” – o que ele também era, sem dúvida –, mas usava-se isso como se ele fosse incapaz de fazer algo mais sério, mais profundo: no caso, a literatura composta por seus primeiros romances, Cabeça de Papel (1976), Cabeça de Negro (1979), as novelas de Filhas do Segundo Sexo (1981) e o póstumo Carne Viva (finalizado quatro meses antes da sua morte, em 1996, e publicado apenas em 2008). Esta minha mediocridade fica explícita na continuação deste artigo escrito por alguém que, hoje, desejaria ser fuzilado em praça pública:
Hoje em dia, o único sujeito prestes a se tornar um farrapo humano sou eu, o responsável por essas linhas tortas traçadas há mais de vinte anos. Não só eu entendi errado o que Paulo Francis escreveu, como sobretudo entendi nada sobre o que ele criou. Pois Francis nunca foi “o jornalista aprisionado pelo tempo”. Na verdade, foi um dos maiores romancistas que o Brasil já teve, capaz de amarrar o eterno com o efêmero, e um dos escritores mais dotados de consciência literária que a literatura nacional abrigou em seus poucos anos de existência (lembrem-se: ela só começa de fato em 1881, com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis). O que a geração de Francis e, consequentemente, a minha geração fizeram com seus livros de ficção foi um crime de lesa-majestade, ao jogá-los na vala do desprezo. Portanto, está na hora de compreender que o mesmo jornalista do célebre Diário da Corte não foi apenas o observador picaresco do que acontecia entre o Brasil e os Estados Unidos (em particular, “Noviorque”, conforme ele apelidava carinhosamente a cidade onde morou até o fim) nos anos finais do século XX. Ele foi, sobretudo, um dos integrantes de um grupo literário muito peculiar – chamado de “A Tribo de Dédalo”. 2. E o que raios seria essa tal de “Tribo de Dédalo”?, pergunta o mesmo leitor impaciente que, anos atrás, era igualmente impaciente com a ficção de Paulo Francis. Bem, para quem sofre de amnésia seletiva, a referência é ao personagem mitológico grego de mesmo nome, um arquiteto genial que, entre coisas, criou o labirinto de Cnossos (o mesmo que abrigou, em seu centro, o Minotauro), foi o primeiro aviador da história (apesar de, no processo, ter provocado a morte de seu filho, Ícaro) e entrou para a posteridade como o modelo supremo do artista moderno. Segundo o ensaísta Guy Davenport, em seu sublime livro The Geography of Imagination (1981), no final do século XIX e início do XX, poetas, artistas e romancistas como James Joyce (cujo alter ego era alguém batizado justamente de Stephen Dedalus), Ezra Pound, T.S. Eliot, Picasso, William Carlos Williams, entre outros, formaram essa “república invisível” que, na prática, tinha um código muito particular. Com seus romances, Paulo Francis passou a fazer parte desta república. O problema é que o seu público não compreendeu nada disso. Viu apenas o outro lado das suas influências, voltadas em sua maioria para o jornalismo – com os nomes de Mencken, Edmund Wilson, I.F. Stone, Millôr Fernandes e Ivan Lessa indo direto para o pódio –, e esqueceu-se que o verdadeiro Francis tinha o desejo de ser uma espécie de Dédalo brasileiro. Havia alguns motivos para essa incompreensão, vários deles alimentados pelo próprio romancista, que simplesmente pouco se importava com o leitor comum ou, em especial, com o leitor pernóstico. O primeiro motivo é a abordagem estilística: Francis nunca foi um adepto do Modernismo Brasileiro, e sim do Modernismo Europeu. Ele não dialogava com os herdeiros de Mario de Andrade, mas com os de Joyce e Eliot; o que nos leva ao segundo ponto, que é a descontinuidade da sua escrita narrativa. Nada é linear nas histórias de Francis; na verdade, tudo tem o clima de pura alucinação. Os personagens aparecem e somem, sem dizer o que fazem nos lugares onde vivem. Parecem vultos, espectros (isso acontecia, aliás, com a persona de Francis em suas autobiografias). A memória se avoluma em diálogos aparentemente desconexos sobre economia, artes plásticas e o destino da Revolução Russa, e cabe a nós decifrarmos o que é verdade e o que é mentira. Isso não significa que não há uma unidade estrutural em seus livros. Pelo contrário: tudo é minuciosamente planejado. Como um Dédalo, Francis sabia o que fazia, e eis aqui o terceiro ponto do ruído com a audiência, acostumada à caricatura que aparecia nas telas da Rede Globo: a sua perfeita consciência romanesca. Cada romance, cada novela, cada linha de suas autobiografias eram pensadas (ou melhor, imaginadas) com uma exatidão que irritava a quem, naquela época, era um reles mortal tentando sobreviver da arte da palavra – o que nos leva à conclusão que o desprezo dos seus pares sobre os livros de Paulo Francis não passava de uma inveja dos diabos. Francis sempre quis ser um escritor de ficção, mas sua estreia no gênero aconteceu somente quando estava próximo dos cinquenta anos de idade, com Cabeça de Papel. Desde o início ele anunciara que este livro era o início de uma trilogia, formada pelos seguintes títulos: o plano era ter duas sequências, Cabeça de Negro e Cabeça, que, décadas depois, seria metamorfoseado em Carne Viva. Isto já indicava um critério ímpar na hora de construir o seu labirinto. Contudo, conforme ocorreram os lançamentos dos dois primeiros livros, a recepção crítica foi a habitual no Brasil: olhares para cima, sorrisinhos esganados e suspiros de ressentimento. Disseram que Francis fazia “romance jornalístico” (tinha de ser Davi Arrigucci para proferir essa besteira); depois, afirmaram que os livros “eram muito difíceis de entender por causa do grande número de referências” (uma tal de Cristiane Costa, famosa por escrever um livro chamado ironicamente de Pena de Aluguel); que “as ideias eram problemáticas” (cortesia de Michel Laub); e, então, o veredito final: “Paulo Francis não será lembrado como romancista” (cerca de 100% das redações tupiniquins). Mesmo assim, ele não desistiu. Continuou com Filhas do Segundo Sexo, depois com as memórias de O afeto que se encerra e Trinta anos esta noite e, só após seu falecimento, descobriu-se que tinha deixado Carne Viva guardado para as gavetas da posteridade. Só este fato demonstra que, na verdade, ele jamais esmoreceu diante do que os “amigos” pensavam dos seus livros mais queridos – uma das características principais (talvez a mais importante) de quem faz parte da Tribo de Dédalo: a perseverança. Os personagens principais de Cabeça de Papel e Cabeça de Negro são os duplos que, na vida jornalística, também representavam a persona de Paulo Francis: Paulo Hesse e Hugo Mann. O primeiro é uma referência a Hermann Hesse, autor de O Lobo da Estepe; o segundo é uma homenagem a Thomas Mann, responsável por dois livros favoritos na biblioteca do escritor brasileiro – A Montanha Mágica e Doutor Fausto. Tal citação não é uma piscadela de erudito pedante; logo no início, ao batizar assim esses protagonistas, Francis informa ao leitor inteligente que seus livros se enquadram no gênero do “romance de ideias”, em que a discussão intelectual será articulada dentro da trama e, muitas vezes, movimentará a vida interior de quem faz parte dela. É precisamente o que acontece com Paulo Hesse, um comunista que vendeu a alma para o conservadorismo burguês, depois do golpe de 1964, e com Hugo Mann, que permaneceu um trotskista empedernido, mas ainda assim conseguiu manter alguns bicos para sobreviver nas redações jornalísticas, apesar da repressão que ficou cada vez mais selvagem com o Ato Institucional No5 (o famigerado AI-5). São homens cujas paixões são motivadas, antes de tudo, pelas ideias que abraçaram – e que, por isso mesmo, os colocaram em danação perpétua. Cabeça de Papel narra o fim fáustico de Paulo Hesse, algo que só irá se saber no final abrupto do romance (isso mesmo, leitor, te dei um spoiler, agora vire-se), uma coda que tem muito mais de humor negro do que da melancolia sugerida na denominação desta notação musical. O título do livro é uma piada a respeito dos jornalistas e intelectuais que circulavam o Rio de Janeiro no final dos 1960, pois são todos umas cabeças que vivem no reino do abstrato e nas quais não há nenhum contato com a realidade concreta. Mas, ao mesmo tempo, é uma piada amarga porque Francis se reconhece nas loucuras idealistas de Hesse e Mann e, por meio do seu romance, faz uma descida às profundezas da própria alma. Nessa autoanálise implacável, o romancista monta as peças do seu quebra-cabeças, com um foco narrativo ambíguo no qual o leitor desconhece se ele deve confiar naquilo que está sendo descrito. Como bem disse José Onofre – um dos poucos críticos que entendeu a proposta estilística de Francis na época do lançamento –, os dois romances só podem ser lidos se forem decifrados como uma criação do próprio Hugo Mann, um intelectual que vive muito mais dentro da sua cabeça e incapaz de ter alguma empatia com o corpo dos outros (é o que se pensa, a princípio). O tema do duplo voltaria em Filhas do Segundo Sexo, um livro que, por coincidência (ou não), é dividido em duas partes, uma dedicada à Mimi, “teúda-e-manteúda” da alta sociedade que precisa se sentir sabida para se rebelar contra a burguesa que a devora espiritualmente; e a segunda é a respeito de Clara, esposa de um professor universitário cuja tara pela sodomia chega às raias do adultério e da loucura, o que provoca a separação definitiva no casal. Sem saber que existem no mesmo universo, Mimi e Clara são espelhos de uma situação feminina (mas jamais feminista) na qual os homens retratados em Cabeça de Papel e Cabeça de Negro não passam de marionetes das paixões (e das mazelas do sexo, independente do gênero). Esta mecânica implacável das taras e do fogo que devora as entranhas humanas é o tema principal de Carne Viva, o romance póstumo que Francis deixou para o leitor, o qual, as usual, o jogou na lata de lixo da crítica, sem ter lido uma única linha. Obviamente, quem perde somos nós. Se antes os duplos dos livros anteriores se mostravam em personagens conturbados, agora o dilaceramento é interno, dramatizado nos devaneios às vezes proustianos, às vezes machadianos, de Francisco Guerra, um banqueiro que relembra a juventude que viveu justamente em Maio de 1968, na França, onde teve um affair com Bea Botelho, jovem da alta sociedade carioca com quem ele se reencontra, trinta anos depois, durante as férias de verão em Petrópolis. O “Guerra” do sobrenome do protagonista não é apenas uma metáfora: é a ideia central de todo o livro – e, quiçá, a que coordenou a ficção de Francis. Neste sentido, Carne Viva é a cristalização de tudo o que ele viveu entre os anos em que, aparentemente, havia abandonado seus romances e suas novelas, desde o lançamento de Filhas do Segundo Sexo, até o final da sua vida, em que, por ironia, se tornou no jornalista mais famoso da televisão brasileira. Esta posição lhe deu uma vantagem única, que seus contemporâneos literatos jamais tiveram, pois agora Francis não está mais interessado nos lumpenproletariates do intelecto, como Hesse e Mann (que, mesmo assim, ressurgem em pontas cinematográficas em Carne Viva), mas faz uma anatomia psíquica de como pensa alguém que vive no topo da elite brasileira. Não à toa que o título anterior de Carne Viva era para ser Cabeça, provavelmente o fecho de ouro da trilogia que o possuiu durante sua carreira literária. Francis passa a abordar quem manda no Brasil, e não apenas quem obedece. A mudança de nome no romance também significa que, como qualquer grande escritor, ele estava aberto às exigências do real, e percebeu, no decorrer da sua trajetória, qual era o “centro secreto” que unificava não só a sua ficção, mas também o seu jornalismo recheado de polêmica. Para entendermos melhor – e com exatidão – qual era o centro deste labirinto, precisamos fazer uma digressão, e irmos aos modelos estéticos de Francis. Como já dissemos, o território em que ele lidava era o “romance de ideias”, mas o termo é incorreto. O melhor é afirmar que Cabeça de Papel, Cabeça de Negro, Filhas do Segundo Sexo e Carne Viva são exemplos do “drama das ideias”. Esta correção de rumo é fundamental porque, apesar de Francis dizer que gostaria de ser da mesma patota de Joyce, Eliot e Pound, ele também reconhecia suas limitações artísticas e deu a pista, no seu próprio texto dramático, de qual linhagem fazia parte de fato. Se há algum grande escritor com quem Paulo Francis tenta se espelhar e emular, de maneira bem-sucedida, entre os membros da Tribo de Dédalo, este escritor é ninguém menos que o canadense, naturalizado americano, Saul Bellow (1915-2005). Prêmio Nobel de Literatura e autor de clássicos como As Aventuras de Augie March (1954), Herzog (1964), O Planeta do Sr. Sammler (1969) e O Legado de Humboldt (1974), entre outros, ele sempre lidou com o desmascaramento das nossas emoções, em especial entre intelectuais, artistas e pessoas extremamente inteligentes, cuja capacidade de se autoenganar alcança uma sofisticação inacreditável. Ora, a ficção de Francis lida com este despir das máscaras, dos disfarces sociais que criamos para nós mesmos, sempre por intermédio das ideias dos outros – e não foi por acaso que seus companheiros de redação recusaram seus romances, simplesmente porque eles odiaram perceber que estavam nus. E isto está tão entranhado em seu estilo literário que a única resposta possível da sua geração foi comentar, de modo mesquinho, que ele “escrevia mal”. Contudo, como alguém pode afirmar tal besteira depois de ler o trecho abaixo, retirado de Cabeça de Papel?:
Estão contentes, ou querem mais? Num serpentear quase infinito, Francis começa com um mero evento social (Paulo Hesse praticando seu lobby diário de jornalista entre as autoridades), enfia um e outro cacoete verbal em inglês para indicar a pretensa sofisticação daqueles sujeitos, dá rápidas pinceladas sobre as pretensões desses figurões, agora abusando do jargão burocrático que a própria imprensa copiará sem pudor do Diário Oficial, e, ao fim e ao cabo, abocanha o pobre leitor, afoito, com vertigem, ao mostrar o veredito no final do túnel, que não é necessariamente luz e sim o abismo definitivo. Tal estilo possui nome – e chama-se arte. O mesmo acontecia com Saul Bellow – e, apesar de Francis demonstrar, no decorrer da sua carreira, que ele tinha uma relação de amor e ódio com o nobelizado (pois é assim que tratamos os nossos duplos), era evidente que o respeitava, e muito. A prova disso está em um outro trecho de Cabeça de Papel, no qual Hugo Mann, completamente bêbado e cheirado de cocaína, imita o vômito rebelde de Herman Mankiewicz na casa de William Randolph Hearst (assistam ao filme de David Fincher, Mank, para saber mais sobre isso), e escuta as seguintes palavras da boca de seu duplo, Paulo Hesse, durante uma festa da alta sociedade carioca:
Se o leitor de hoje pensou – mas isto não é Paulo Francis descrevendo a si mesmo? –, calma que ainda tem mais:
Com certeza, Paulo Francis se via como um “condenado profissional”, um condenado que ganhava bem mais do que todos os jornalistas da sua época, mas, por isso mesmo, daí vinha o seu profissionalismo em ver o que ninguém mais queria admitir para si mesmo. Seu parentesco literário com Saul Bellow vem desta atitude de escavar até o fim, indo contra o nosso inferno da estupidez (o moronic inferno), para descobrir ali o que havia de mais precioso no ser humano – algo que o próprio Bellow incentivava como poucos em sua literatura, conforme explicitou na introdução que escreveu para o polêmico livro O Declínio da Cultura Ocidental (1987), de seu amigo Allan Bloom:
Voltando à obra de Francis, encontramos esse mesmo tipo de espírito de resistência, mas ao mesmo tempo de serenidade, nas derradeiras linhas de seu último romance, quando o banqueiro Francisco Guerra – recuperado de um incêndio que pôs sua vida anterior de pernas para o ar, com o seu corpo chamuscado em carne viva, suportando tanto o falecimento de sua esposa, Bebete (um duplo de sua antiga amante, Bea) como a destruição de sua residência luxuosa em Petrópolis –, chega a esta melancólica conclusão, digna de um Memorial de Aires (não à toa, o livro favorito de Paulo Francis em toda a obra de Machado de Assis):
O fogo da existência inevitavelmente expulsará o fogo das paixões, afirma Francis em sua despedida literária. Porém, como diria um dos seus poetas mais queridos, T.S. Eliot, essa ideia do fim ser também o início sempre o acompanhou e, para quem era acusado de ser um misógino, é irônico pensar que ele sintetizou a sua obsessão pelas cabeças que julgam mandar no Brasil (e no mundo) por meio do pensamento de uma das suas “filhas do segundo sexo”, Clara. Ela conclui que todos os homens ao seu redor não passam de crianças:
A ficção de Paulo Francis é um labirinto cujo centro é a essência do que foi o homem Franz Paul Heilborn, um sujeito sentimental que, apesar de todo o sucesso, de toda a polêmica, de toda a guerra dentro dele, queria apenas terminar sua vida com um pouco de paz. Ele foi Teseu, que decepou o Minotauro, para depois descobrir que a verdadeira saída era ser Dédalo o tempo todo. E é uma pena que seus contemporâneos o viram somente como se fosse um Ícaro, prestes a se afogar no oceano porque voou muito próximo do sol. 3. A imitação de Ícaro é um destino comum no Brasil, um país que age como a porca que come os seus filhos. Além de dois volumes autobiográficos – O afeto que se encerra e Trinta anos esta noite –, Paulo Francis publicou dois volumes de ensaios (Opinião Pessoal [1966] e Certezas da Dúvida [1970]), escreveu dezenas de prefácios e milhares de colunas. Ele defendeu sua obra de ficção com unhas e dentes, alegando que tinha criado um delírio e deveria ser interpretado como tal, mas não tinha jeito: para seus colegas, os romances eram muito ruins e tal sentença foi uma condenação ao esquecimento. A sensação de fracasso como romancista permeou todo o seu trabalho jornalístico nos anos seguintes. É a época do último Francis, que decide se autoexilar definitivamente em Nova York, financiado pela Rede Globo, e dá constantes bananas ao provincialismo brasileiro. “Somos um país de jecas”, afirmava. Contudo, não hesitava passar as férias de verão no Rio de Janeiro ou em São Paulo, onde sempre era convidado para uma entrevista no programa Roda Viva da TV Cultura. Durante as férias de Natal ia sempre a Paris, onde se extasiava com a beleza da catedral de Notre-Dame e adorava escutar uma missa em latim. Para quem era fã de Trótski, era uma atitude assombrosa. Mas sabe-se que Francis nunca foi dogmático em suas opiniões, apesar do suposto radicalismo, e o que era mais inusitado era ele dar uma volta de 180 graus, e de socialista sonhador se transformar no mais implacável dos liberais – tão implacável que até Roberto Campos se assustava com o que Francis dizia (o economista era elogiado por ele na década de 1990, após ser constantemente insultado durante os anos 1980). Conforme o leitor lê este texto, as contradições que impulsionavam a vida de Francis ficam cada vez mais evidentes. Ele adorava declamar Walt Whitman em pleno Manhattan Connection, para confundir Caio Blinder: “I contain multitudes” [Possuo multidões]. Esta variedade de personalidades dentro de uma persona podia dar a impressão de ser uma esquizofrenia estéril, mas o que lhe dava a sua unidade era um implacável senso de determinação. Ele sabia o que queria, sabia como chegar ao que queria – no entanto, por ironia, só os amigos mais íntimos imaginaram que Francis não conseguiu o que queria. Eis aí a tragédia de sua vida, a encruzilhada que transformou uma suposta caricatura numa tristeza ímpar. Na impossibilidade de ser compreendido por seus pares, Paulo Francis não apenas se tornou o paradigma do escritor sem concessões; ele é um modelo da consciência do nosso fracasso, mas também de sua superação. Sobre o seu jornalismo, Francis sabia como poucos que era o relato dos fatos de um cotidiano que, um dia, será história. O crítico cultural é obrigado a refletir sobre eles no calor da hora, sem a possiblidade de ver algo mais além do tempo atual. Os grandes jornalistas, como Samuel Jonhson, Jonathan Swift, George Bernard Shaw, H.L. Mencken, Edmund Wilson, Robert Hughes, Otto Maria Carpeaux, Tom Wolfe, Gay Talese, Norman Mailer, Truman Capote, Gabriel Garcia Márquez, entre outros, são capazes de ver os faits divers e analisá-los além do presente, independente das suas formações ideológicas e intelectuais. Há uma sub specie aeternis que liga estes sujeitos tão díspares, mas também um compromisso formidável com a inteligência do leitor. Nunca subestimaram o companheiro silencioso que ficava no outro lado da página, e o que mais queriam era que a irritação os consumisse, pois, como diria Philip Roth, “você precisa ficar irritado para começar a ver alguma coisa”. Francis exibia uma irritação considerável com o estado de coisas, e quando trocou seu esquerdismo por uma posição mais liberal, explicou sua decisão da maneira mais clara e direta possível: “O esquerdista é burro”. Para este tipo de jornalismo, a burrice é sinônimo de morte, e a pior morte possível: a do espírito. Mesmo com seu ceticismo (“Faz bastante tempo que me convenci de que a vida não tem pé nem cabeça, que religião é uma tentação emocional resistível, porque não faz sentido. E ideologias, waaal”), em contrapartida promovia uma liberdade de consciência idiossincrática. “Não mudei muito desde que percebi que podia pensar sem que fosse mero reflexo de uma necessidade”, escreveu naquele prefácio curto e revelador de O Dicionário da Corte em 1996:
Francis aceitava a complexidade do mundo e a única forma de retratá-la era por meio dessas “possibilidades da imaginação”. De novo, a ambição literária invadia as brechas do seu projeto jornalístico. O fato de ter sido um escritor incompreendido em seu tempo não o torna um fracassado convicto, pois talvez seja justamente por ter o dom particular da determinação de ultrapassar a prisão do tempo – característica marcante dos homens do espírito – que fez o seu jornalismo ser também uma espécie de literatura. Neste sentido, Paulo Francis pode ser considerado, na sua crítica cultural, como o nosso Karl Kraus. Seus chistes, boutades e opiniões hilárias fazem parte do repertório popular e qualquer um com dois dedos de testa gostará de saber qual era a visão de Francis sobre um determinado assunto. Mas, atualmente, são poucos que ainda têm este hábito. Com sua morte, Paulo Francis foi vítima da lavagem cerebral progressista, que, pouco a pouco, o classificou como se fosse um pagliacci. Seus leitores cativos sabem que ele foi mais que isso; contudo, o tempo aprisionou a obra de Francis em uma jaula estranha, onde a procura pela liberdade intelectual se tornou a busca pela superação de seus limites, e esta superação fica no limiar entre o esquecimento e a permanência da memória. Sem dúvida, Francis era um sujeito divertido que podia cantar, na maior cara de pau, “Chiquita Bacana” com Nelson Motta (hoje isso seria inimaginável), mas a citação que sempre me lembrei foi quando ele elogiou o filme Razão e Sensibilidade (1996), de Ang Lee, com Emma Thompson, baseado no clássico de Jane Austen. Fã da escritora inglesa (quem diria!), Francis deu uma bronca em Caio Blinder e Lucas Mendes ao ouvir deles que Austen era boba e ingênua por escrever romances sobre moças e moços apaixonados, e seus amores não correspondidos. “Vocês são umas bestas!”, resmungou com um brado, “Não há dor mais cruel e profunda que a do amor em vão”. Era um momento de poesia no meio de um programa que sempre foi uma conversa de botequim. Com aquela resposta, pude ver, pela primeira vez, a humanidade trágica de Paulo Francis. Talvez ele fosse mais um sujeito que cantasse a famosa reclamação de Antonio Maria (aliás, um dos seus mestres, apesar de serem rivais no passado): “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire”. Mas também era claro que não queria ser amado indiscriminadamente. Queria ser apenas lido – era, como o próprio disse, “uma forma de existir”. Dizer que a obra-prima literária de Franz Paul Heinborn foi o Diário da Corte é um insulto à posteridade. Ao contrário de Karl Kraus, que nos deixou pelo menos uma gigantesca e fragmentada peça de teatro, Os últimos dias da humanidade, Francis nos deixou uma ficção que, na verdade, nos permite perceber uma unidade em seu pensamento. Para alguns infelizes, o que se tem são retalhos brilhantes. Nada mais jornalístico, nada mais humano – mas sempre contra as intenções deste Dédalo soterrado pelo tempo dos outros. Seria ele um mero farrapo? Yeats dizia que o intelecto do homem tinha de escolher entre a perfeição da arte e a desordem da vida. Francis queria a primeira, e, ao mesmo tempo, aceitou a segunda. Isso não o torna uma colcha de panos pobres; torna-o, isso sim, surpreendentemente próximo de nós. Por isso, não devemos encerrar nosso afeto por ele e jogá-lo na vala do esquecimento ou aceitar a condenação injusta feita pelo vespeiro de dissimulados que hoje comandam o debate público. Com todas as suas falhas e todas as suas virtudes, Paulo Francis, no fim, nunca perdeu a dignidade. E, na hora da realidade implacável, isso é a única coisa que importa, e é também algo que o jornalismo brasileiro já desistiu de ter há tempos. Waaal, que emocionante, diria ele deste texto. Mesmo com sua ironia cortante, a única resposta possível para recuperar esta mesma dignidade é dizer apenas: “Obrigado”. Quem quiser colaborar com o meu trabalho, além do valor da assinatura desta newsletter pessoal, pode me ajudar por meio do pix: martim.vasques@gmail.comE quem quiser apertar o botão abaixo só para fazer a minha felicidade - e manter essa newsletter de modo mais profissional, be my guest: *** AVISO: NOVO CURSO - ALÉM DO ZERO
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sexta-feira, 5 de dezembro de 2025
O Farrapo Que (Não) Se Encerrou
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