Diário e rememoração, III Por Alexandre Sartório São Paulo, 29/03/2021. Acabei de assistir ao Taxi Driver pela segunda vez. Não me lembrava bem como era; é desesperadoramente verdadeiro. Travis Bickle o motorista de taxi mais solitário do mundo, mais angustiado para encontrar algo de importante para fazer, para não desperdiçar a vida, angustiado para se aproximar de alguém, acaba sendo levado, a um ato bizarramente – bem, mais ou menos; bem mais ou menos – heroico, depois de falhar no assassinato do candidato a presidente Palantine – ao qual provavelmente ligava um certo sucesso e o troféu que é a admiração que tem por este Betsy, que dispensara o Travis – e tira Iris, uma mocinha de 12 anos (!), da prostituição, tão somente matando a tiros e facadas três sujeitos: o cafetão e amante Sport, o host da espelunca-motel e o cliente do momento. A melodia do jazz misturada às luzes que inebriam nas cenas em que Travis vaga ou leva passageiros pela noite de Nova York fazem da sarjeta da cidade, na qual chafurdam prostitutas, cafetões, drogados, assassinos, algo de sublime, transformando, por meio da arte, o buraco negro existencial numa obra de solidão contemplativa. “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora” (Pascal, Pensamentos, p. 86). Ao longo do dia, também li umas sessenta páginas da República: parte do livro VI e todo o livro VII, em que Sócrates usa a imagem da caverna para tratar da apreensão do mundo sensível e da ascensão à do mundo inteligível, que exige coragem e responsabilidade de quem a ele chega, o filósofo. Neste caminho, ciências como a Geometria, a Astronomia, devem ser estudadas, mas de certo modo – tendo como finalidade não o múltiplo, mas o caminho ao uno –, como auxiliares da Dialética, pináculo do conhecimento, no qual o entendimento se move apenas por conceitos, em busca das essências. Ontem assisti a In the Mood for Love (2000), de Wong Kar-Wai, de Hong Kong, filme que aparece na lista dos cem melhores filmes de todos os tempos da BFI. O filme é de fato magnífico. Trata, de modo extremamente sutil e insinuada, da relação amorosa entre um homem e uma mulher casados, mas desdenhados e traídos pelos seus esposos (os rostos destes nunca aparecem, apesar de o ponto de vista do filme se dividir entre os dois protagonistas). A fotografia é das coisas mais lindas do cinema. O diretor usa os figurinos, as luzes e cores dos cenários em relação estreita com os estados de espírito e os momentos da relação entre os protagonistas. Posso e devo desenvolver a análise das cores, da presença da chuva, da música e da câmera lenta, o quê noir do todo, num outro momento; é tudo pensado meticulosamente – e trabalha para a perfeição de obra que é a película. O cruzamento de adultérios e desencontros leva a um florescimento no fim, arrefecido o sofrimento da traição e do afastamento do casal de amantes, no aparecimento de uma criança (provavelmente filho da relação entre os amantes) e de um momento contemplativo, fora do tempo de chuva e ansiedade – fora do tempo mesmo, quase –, no templo cambojano abandonado, que o protagonista visita, e, depois de escolher um buraco numa das paredes da construção, sopra o segredo – como na história da árvore que ele conta ao amigo ligado exclusivamente, digamos, aos interesses da carne – que gerará novamente vida (nasce no buraco uma pequena planta numa cena seguinte). *** São Paulo, 01/04/2021. Hoje é quinta-feira da Semana Santa. Li mais um pouco da República, o fim do livro VIII e o livro IX, nos quais Platão trata dos tipos humanos correspondentes a cada uma das cinco formas de organização política – timocracia, oligarquia, democracia, tirania e reinado –, mostrando que o melhor e o que traz mais felicidade é o tipo e o regime do reinado do rei-filósofo, que se guia pela verdade e, por isto, sabe melhor do que qualquer um qual é o bem mais desejável e qual das três partes da alma – a que busca sabedoria, a que busca a fama ou a que busca a riqueza – deve comandá-la, da mesma forma que o sábio, o filósofo, será o melhor dos tipos para comandar a cidade ideal. Tenho ansiedade pensando em que ler depois, e que livro virá a seguir, e depois, e depois – pensei no Fedro, tendo em mente a imagem maravilhosa (e verdadeira até as últimas consequências) da alma como um cavaleiro controlando uma parelha de cavalos; ou mudar um pouco de ares e ler uma ou duas peças de Shakespeare, talvez Coriolano e uma comédia de início de obra, como Comédia dos Erros; ler Pascal, em busca de mais um verdadeiro guia existencial e estilístico (que, sei, ele será); ou começar um dos grandes romances que quero, preciso e pretender ler, Moby Dick; por último, um que será um dos próximos autores em cuja obra entrarei com cuidado: Kafka. À tarde, assisti a Out of the Past (Fuga do Passado), do Jacques Tourneur, com o Robert Mitchum no papel principal, Jeff Bailey, detetive particular que começa o filme no idílio do amor de uma mulher boa e pura, Ann, para ser tragado de volta ao passado de perfídia, traição e morte pelo qual havia caminhado, por diversas cidades, nos EUA e no México (Acapulco, o inferno luminoso em que tudo começou, quando encontrou a vileza de uma bela mulher, Kathie), como se tivera ressuscitado depois de três dias no inferno (no qual andou pelas sombras, que muitas vezes são monstros que assombram seu sono ou sua alma desperta) – mas o passado foi forte o bastante para, apesar de Jeff ter resistido, ter fixado a luminosidade pura do rosto de Ann, puxá-lo e enterrá-lo nas suas sombras. Ontem, assisti a Ben-Hur, uma preciosidade. São quase quatro horas de uma alma humana – nobre masprofundamente humana – que é guiada, mesmo de longe, à espreita porém amorosa e cuidadosamente, por Cristo. Ao contrário do que diz Ian McEwan, num erro realmente bizarro de avaliação, a respeito de The End of the the Affair, não é um erro pôr Deus como protagonista de uma história – é o maior dos acertos. O senhor(a) é atualmente um(a) assinante gratuito(a) de Livraria Trabalhar Cansa. Para uma experiência completa, faça upgrade da sua assinatura. |
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sábado, 22 de novembro de 2025
Diário e rememoração, III
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