Obrigado pela sua leitura! Mas, antes, um aviso:Alguém muito doido resolveu me convidar para um debate na USP (Universidade de São Paulo), em um evento chamado justamente USP PENSA BRASIL, no painel intitulado “Plutocracia e a Crise da Democracia”, junto com o repórter Bernardo Mello e Franco e a ativista Viviana Santiago. As informações para se inscrever e ir estão aqui. Agora, vamos ao texto do dia:João Ubaldo Ribeiro escolheu a opção da virtude quando criou o personagem que nomeou o seu segundo romance, publicado em 1971: Sargento Getúlio. Mas não é a virtude a que estamos acostumados e que geralmente identificamos como exemplo de santidade ou de retidão moral. É algo mais inusitado, mais ambíguo e, por isso mesmo, mais próximo da realidade. Getúlio Santos Bezerra é o protagonista desta “história de aretê”, como avisa o próprio Ubaldo logo na epígrafe que emoldura a história do livro e dá também o seu significado; ele tem de levar um prisioneiro político da vila de Paulo Afonso até a cidade de Barra dos Coqueiros, do Sergipe à Bahia, e enfrentará alguns obstáculos pelo caminho. Fará isso a qualquer custo, porque ele, como bom militar, foi encarregado dessa tarefa e é seu dever cumpri-la, mesmo quando o chefe que o mandou resolve recuar por motivos políticos e manda a polícia persegui-lo para eliminar quaisquer suspeitas da sua decisão equivocada. A aretê explicitada pelo romancista tem dois sentidos e ambos são encontrados na jornada de Getúlio: o primeiro significa a excelência em cumprir uma missão, não importa onde, não importa como, numa emulação dos feitos heroicos de personagens grandiloquentes, como o Aquiles da Ilíada, de Homero; e o segundo é parecido com o que não conhecemos mais – uma virtude interior, a plena consciência de seu valor num mundo brutal, inóspito, agreste. No início do romance, Getúlio é, sem dúvida, o primeiro tipo de aretê. Ubaldo consegue transmitir-nos essa sensibilidade bruta por meio de uma técnica literária sofisticada – o fluxo de consciência popularizado pelo modernismo europeu nas décadas de 1920 e 1930, em especial por James Joyce em Ulysses. Sabemos somente o que Getúlio sabe, mas podemos intuir por outras brechas o que acontece no mundo além do seu horizonte. Ao mesmo tempo, a linguagem usada por Ubaldo é também uma forma insólita de querer capturar tanto a realidade interior do personagem como a realidade que o circunda; é uma linguagem que se pretende totalizante e que, a partir da descrição de uma paisagem, também se refere a uma peculiar visão de mundo. Vejam, por exemplo, como isso é concretizado quando Getúlio narra o que acontece com a carne de um cadáver exposto ao ter seus nacos arrancados por um urubu:
Há toda uma metafísica neste trecho, uma metafísica do caboclo. Aqui, a linguagem do romancista que quer apreender o real e a violência do personagem, como único meio de ver o mundo e de expressar sua vivência, fundem-se em um todo quase indistinguível. É claro que Ubaldo não aprova as ações extremas de Getúlio – as torturas que faz com os prisioneiros, o assassinato de sua ex-mulher por motivos de honra, ao não querer ser chamado de “corno” –, mas é difícil não perceber também que o escritor sente que a sua criação está prestes a escapar do seu controle e terá vida própria. Afinal, como diria o próprio Ubaldo ao relembrar um dos dez conselhos que seu pai, Manuel Ribeiro, lhe deu quando criança, uma das regras mais importantes que recebeu foi a de “não ser tutelado”, isto é, não aceitar que o convençam a fazer algo contra a sua vontade, a fazer algo que impeça a excelência de realizar a sua missão. Ora, eis aqui o dilema de Getúlio Santos Bezerra: ou se rende à nova ordem de seu empregador ou cumpre o primeiro comando sem hesitar porque decide, antes de tudo, não ser mais um joguete da História. Neste ponto, fica também muito clara a intenção irônica de Ubaldo em batizar o seu personagem com o nome do político gaúcho que também resolveu que o Brasil não seria mais tutelado por outros países e se via como um salvador para as massas. A psique do sargento Getúlio faz parte de uma tradição imemorial, de uma mentalidade próxima do neolítico. Vilém Flusser, em sua Fenomenologia do Brasileiro, a descreve perfeitamente como se ela fosse um “joguete na mão de forças superiores benignas ou, na maioria dos casos, malignas”. E complementa em um trecho que vale a pena ser reproduzido na íntegra:
Contudo, no decorrer do livro, tanto o escritor João Ubaldo Ribeiro como o personagem Getúlio Santos Bezerra passam por uma “conversão romanesca”, como diria o pensador francês René Girard, em que surge lentamente o segundo sentido da aretê já referida – e o sujeito que era um joguete de forças desconhecidas torna-se alguém que começa a criar a sua própria História, a fabular o seu próprio mito, igual ao Riobaldo Tatarana de Grande Sertão: Veredas. Conforme realiza a sua travessia no deserto fronteiriço entre Sergipe e Bahia, o sargento imagina que terá uma prole de guerreiros, encabeçada por seu filho inexistente, Vencecavalo Santos Bezerra (que depois seria protagonista de outro livro de Ubaldo com o mesmo nome), e em um delírio que não deixaria nada a dever a um trecho de François Rabelais, o autor do clássico Gargântua e Pantagruel (1532-1664), narra como ele abateria seus inimigos “agarrando as balas pelos dentes” e girando um “burro pelo rabo e rodou e rodou e rodou e foi atacando a tropa com os burros e cada um que se levantava tomava uma burrada”. No fim, Getúlio alcançará sua aretê interior ao decidir morrer graças ao fato de que cumprirá a missão dada com a excelência que sempre foi sua. “Agora sei quem eu sou”, ele repete sem parar nos seus instantes finais. As duas aretês se unem em um ato de verdadeira coragem, como acontece com os personagens que criam sua própria tragédia. A afirmação de sua identidade é também a forma que encontrou para tomar posse de si mesmo, de não se sentir mais um estrangeiro de sua vida. A morte para ele sempre foi algo inevitável, mas agora é algo mais: tem um sentido. Getúlio Santos Bezerra sabe quem ele é; e o romance escrito por João Ubaldo Ribeiro também se reconhece como o resultado de um escritor que dominou a sua aretê particular e deve expandir os poderes da linguagem para decifrar a alma de um país que ainda esconde a “saudade” do seu próprio povo. Esta é a missão que Ubaldo estabelece para a sua ambição literária ao escrever Viva o povo brasileiro (1984), um épico de quase oitocentas páginas que cobre quatro séculos de história nacional. Ele talvez seja a última tentativa ficcional de sintetizar o que seria a nossa identidade, de sabermos realmente quem somos nós, em um todo que seja compreensível e legível para o leitor comum. O painel apresentado por Ubaldo divide-se em três linhas genealógicas: a das almas que reencarnam em diversos corpos com o passar do tempo, no caso o da família da negra curandeira Dadinha; que depois se ramificará na descendência de Vevé, mulher corajosa muito à frente de sua época, caçadora de baleias nas praias da ilha de Itaparica (lugar central para a mitologia do escritor baiano); característica que depois continuará com sua filha, Maria da Fé, futura líder de um grupo de rebeldes chamado “A Irmandade do Povo Brasileiro”, cujo envolvimento com as guerras e as revoltas que marcaram o Brasil sempre será envolto de mistério. A segunda linha é a de Périlo Ambrósio, um oportunista que se tornará o Barão de Pirapuama, graças a sua habilidade de escapar de momentos perigosíssimos para a sua pele, e que, apesar de todo o seu poder conquistado à custa de muitas falcatruas, é roubado por seu braço-direito, o mulato Amleto Ferreira, fruto da miscigenação entre um imigrante inglês e de uma negra brasileira – e o futuro patriarca do terceiro braço narrativo, em especial com seus filhos homens, o poeta Bonifácio Odosio, o clérigo Clemente André e o futuro militar Patrício Macário, que, por esses lances que só a ficção consegue realizar, será o amante de Maria da Fé quando o Exército brasileiro enfim perseguir a Irmandade de revoltosos. O romance mantém boa parte do ritmo e do fôlego com a competência de um maratonista porque, felizmente, não cai na arapuca de ser mais uma alegoria ou mesmo uma parábola. Sua forma é a mesma de Sargento Getúlio: o leitor se vê diante de uma “conversão romanesca” em que a trama tenta crescer sozinha, sem a interferência de uma mão pesada que resolva dar uma rumo predeterminado aos personagens e às ideias desenvolvidas ao longo do enredo. Ao contrário de um Jorge Amado, repleto de uma safadeza solar, Ubaldo vê as relações entre amor e paixão abraçados por uma corrosiva sexualidade. Não há alegria em nenhuma espécie de intercurso carnal; há ironia, isso sim, muito sarcasmo temperado com dendê e uma sugestão de que o sexo é sobretudo uma arma para afirmar ou conquistar o poder. Nada escapa ao olhar cáustico brincalhão do romancista: em uma cena antológica, ele descreve Périlo Ambrósio masturbando-se freneticamente, a imaginar como seria estuprar uma escrava recém-chegada na sua senzala, tendo noção do seu poder justamente porque sente que até a terra onde o seu sêmen cairá está dentro do seu domínio. Contudo, esta vitalidade se mantém por “boa parte” do livro, não sempre. A corrente de dissimulação que percorre as famílias dos personagens indica também o desejo do romancista de desvelar essas falsidades, como se fossem uma característica da identidade nacional. Todos têm algo a esconder dos seus próximos, todos têm um segredo que jamais será revelado ao público. Aliás, como de hábito, o próprio Ubaldo dá a dica de como interpretar sua intenção logo na epígrafe de abertura: “O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias”. A monomania na mentira é contraposta à monomania do escritor em querer usar a língua e a linguagem de todas as formas possíveis para abarcar tudo e todos, numa tentativa de realizar o “romance total” defendido por Mario Vargas Llosa, um romance que seja um retrato fiel dos variados estratos e castas sociais de um país, abordando não só os temas políticos como também as complexidades individuais e emocionais de cada personagem. Em um empreendimento literário que está sob o signo do fingimento como método, é dever do romancista não deixar nada escapar aos seus sentidos, nem mesmo como seria o miasma de uma baleia sendo dissecada em meados de 1827, como vemos neste trecho, repleto de sinuosidades barrocas que claramente homenageiam o estilo do Padre Antônio Vieira:
Conforme a leitura avança e as discussões sobre o que seria a identidade nacional se centram nessa metonímia simbólica chamada “o povo brasileiro”, nós nos perguntamos se o romancista conseguirá escapar das arapucas que armou para si mesmo, arapucas que inevitavelmente envolvem questões políticas e ideológicas, ainda mais se observarmos a época em que o romance foi concebido e escrito, justamente o início da década de 1980, quando o Brasil saía de uma ditadura militar que já estava com prazo de validade e entrava em uma democracia que mal se sabia se duraria o suficiente. O crítico Wilson Martins foi o único que apontou esse problema em um ensaio que analisava a obra de Ubaldo, chamando-a de “um caso de populismo literário”. A respeito de Viva o povo brasileiro, ele escreve que
Infelizmente, Martins, em geral conhecido por seus argumentos desprovidos de candura, foi doce e suave no seu veredito. O que ocorre é o contrário: Ubaldo perde o fôlego de romancista e, nas últimas cem páginas, revela-se como um populista maniqueísta e, como se não bastasse, um progressista que acredita piamente que o sentido da História do Brasil só será explicado pelo momento presente no qual o escritor cria e oferece o livro que está diante do leitor contemporâneo. Para ele, o tal do Povo Brasileiro é o grande segredo da nação, desconhecido de todos, até de si mesmo, que vive numa guerra civil entre uma elite dominadora e uma massa de desprovidos que, cedo ou tarde, só tem a revolta como único meio para conseguir alguma justiça e, claro, algum poder. Wilson Martins diagnostica muito bem o que seria esse “populismo literário” a partir dos conceitos do antropólogo americano Edward Shils, que diz que tal atitude
Somado a isto, temos também a crença próxima da religiosa, protegida por aquele charme hipnótico que marca quem faz parte do círculo do totalitarismo cultural, de que a História tem um curso definido, rumo a um progresso que enfim se revelará a quem viver no instante derradeiro em que tudo será resolvido, em especial as mazelas da sociedade corrompida. No caso de Ubaldo, essas duas ideologias prejudicam não só o seu romance; prejudicam também como a elite literária vê o país e a língua da qual faz parte, criando uma nova casta em que será este iluminado, o escritor, que, por meio da literatura, deixará os dilemas morais em segundo plano, e explicará apenas pela força do seu estilo o que é este enigma chamado de “identidade nacional”. Tudo isso poderia ser mera especulação de crítica literária, não fosse por um detalhe: João Ubaldo Ribeiro também foi cientista político, com mestrado na área pela Southern University of California e com passagens pela cátedra acadêmica na Universidade Federal da Bahia. Além disso, escreveu um pequeno manual didático chamado singelamente de Política – Quem manda, por que manda, como manda (1981), publicado três anos antes do lançamento de Viva o povo brasileiro. E ele mesmo afirmou em cada uma das entrevistas que dava à grande imprensa que, apesar da sua desilusão com as ideologias do marxismo e do liberalismo, via-se sobretudo como político e que sua obra literária tinha o dever de ensinar ao leitor justamente o conselho que seu pai lhe deu quando era criança. Porém, não querer ser tutelado de qualquer forma também exige um preço – no caso, o sufocamento da consciência individual, como Ubaldo deixa claro neste trecho de seu livro sobre a vida cívica:
A apatia sobre a qual Ubaldo comenta não é a inércia dos sentimentos que embota a nossa capacidade de indignar-nos moralmente perante o garrote do Estado quando este quer mudar o comportamento de um indivíduo; é a apatia do sujeito que se vê, igual a Getúlio Santos Bezerra, como um joguete de forças que não consegue compreender e, por isso, só tem a ação da revolta como uma resposta eficaz às suas inquietudes. Para o escritor baiano, a indiferença é o pior dos pecados no terreno político. Contudo, ele não se permite entender que, como diria o filósofo francês Alexis de Tocqueville, às vezes, para alguém que se recusa a jogar no ambiente político porque os valores estão corroídos, a única solução é o exílio interior, o recolhimento entre poucos amigos que possam entender que existem outras coisas na vida além da disputa de votos e a conversa fiada das assembleias. Na visão de mundo ubaldiana, até mesmo a relação entre esposos está contaminada pelo poder e tem um impacto político na sociedade:
Não se trata mais de ver a realidade tal como ela é – na decisão referente ao casal que está exclusivamente dentro do âmbito privado do marido e da mulher, mas sim na insistência de ver esta relação sob o prisma ideológico e a consciência coletiva defendida por Mário de Andrade, o véu que tapa os olhos da pessoa que tenta observar a sociedade enquanto ela também se protege em uma máscara que a esconde dos outros (na metáfora brilhante usada por José Guilherme Merquior). Há sempre alguém no comando, Ubaldo afirma sem hesitar, no relacionamento entre ambos os sexos ou na escolha de um líder de time de futebol. Tudo lhe parece condicionado em uma relação de dominante e dominado, em especial a dominação voluntária e quase indestrutível que “se faz pela cabeça”:
Eis aqui a palavra perigosa: coletivamente. No pensamento político de João Ubaldo Ribeiro – e, por consequência, na sua obra literária – não há espaço para a decisão individual, fora das instituições soi disant democráticas ou então do abraço caloroso da massa popular. Entretanto, parece que ele se esquece do outro aviso de Tocqueville: sempre se deve tomar cuidado com “a tirania da maioria”. Afinal, o povo é dado a certos caprichos que nem o mais inteligente dos iluminados consegue compreender. O desejo de tomar posse de si mesmo e de cumprir a sua aretê a qualquer custo, seja como romancista, seja como cidadão, levou-o ao pior dos exílios – o que não consegue mais entender a ambiguidade moral do mundo em que vive porque não permitiu que o romancista respirasse e respeitasse o real, preferindo, infelizmente, que o ideólogo, mesmo com as melhores intenções, pavilhasse os ladrilhos do inferno com as ilusões que têm uma única raiz: o ressentimento. Quem quiser colaborar com o meu trabalho, além do valor da assinatura desta newsletter pessoal, pode me ajudar por meio do pix: martim.vasques@gmail.comE quem quiser apertar o botão abaixo só para fazer a minha felicidade - e manter essa newsletter de modo mais profissional, be my guest: Para quem quiser ler mais:You're currently a free subscriber to Presto. For the full experience, upgrade your subscription. |
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quarta-feira, 24 de setembro de 2025
Um Viva Ao Povo Brasileiro?
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