Obrigado pela sua leitura! O Trauma Do Sagrado25 anos depois do 11 de setembro, o mundo ainda não compreendeu a força perturbadora da religiãoO escritor francês Leon Bloy dizia que “há espaços no coração do homem que ainda não possuem existência, e o sofrimento neles atua para que possam existir”. Sem dúvida, os pintores Makoto Fujimura e Claudio Pastro concordariam com esta afirmação. Fuijmura é um artista sino-americano que se inspirou no romance Silêncio, do escritor japonês Shusaku Endo, para refletir sobre o papel do artista em um mundo destruído por traumas que estão além da nossa compreensão. Segundo ele, nos últimos 70 anos, o Oriente nipônico e o Ocidente dos EUA foram vítimas dos seus respectivos Marcos Zero (“Ground Zero”) — as bombas atômicas de Nagazaki e Hiroshima, além do atentado terrorista do 11 de setembro que destruiu as duas torres do World Trade Center. A partir da escrita de Endo, Fujimura recupera outro Marco Zero da cultura japonesa, situado no século XVII, quando o Japão ainda era um regime feudal — no caso, a perseguição sistemática aos cristãos, seja japoneses ou missionários jesuítas e franciscanos, obrigados não apenas a suportar torturas excruciantes (como “o suplício do poço”), mas também a cometerem apostasia, pisando em cima de um ícone com o rosto de Jesus Cristo ou da Virgem Maria — o fumi-e –, e assim continuarem vivos. Esses eventos ajudaram a criar no Japão o que Fujimura chama de “cultura fumi-e”. Trata-se da supressão de qualquer espécie de iniciativa individual, deixando o sujeito em um ostracismo social, no mínimo, ou desesperado pela própria sobrevivência física, em um país que não consegue superar as diferenças metafísicas entre uma visão de mundo fundamentada na adoração de uma natureza imanentista e uma religião aberta ao transcendente por meio do sacrifício de ninguém menos que o Filho de Deus. (Qualquer semelhança com o Brasil não é uma mera coincidência) A reação a esta “cultura fumi-e” seria justamente o que Shusaku Endo e outros artistas japoneses fizeram — e aqui os nomes mais célebres são os de Tohaku Hasewaga, Matazo Kayama, Katsushika Hokusai e Sen no Rikyu. Eles foram obrigados a criar uma linguagem cifrada e subliminar para expressarem justamente a iniciativa individual que o Japão sufocava a qualquer custo. Perceberam também que não se tratava apenas de uma perseguição contra uma religião específica - no caso, o Cristianismo -, mas sim da destruição da própria natureza humana tal como conhecemos - uma característica marcante de qualquer governo com pretensões totalitárias, independente da época histórica que vivemos. Fujimura se alia a esta tradição artística. E vai além: ele recupera a obra do romancista japonês para fazer a conexão do Marco Zero da perseguição cristã no Japão do século XVII ao Marco Zero das bombas atômicas e do terrorismo que ainda nos atormenta. Para o artista plástico, Endo faz uma meditação intensa sobre o trauma manifestado quando o ser humano conhece (e reconhece) o sagrado — e quais são as principais consequências morais e práticas deste encontro. Essas consequências são descritas em O silêncio, um romance que tinha tudo para dar errado. Seu personagem principal, Sebastião Rodrigues, é um jesuíta português que vai ao Japão do século XVII no meio de uma intensa perseguição religiosa; e o orgulho de sua fé é tão inflado que nos faz perguntar se o Marquês de Pombal não tinha razão ao querer eliminar esta ordem eclesiástica da face da Terra. Além disso, o centro deste drama envolve uma palavra que atualmente ninguém consegue compreender porque ninguém quer saber a tragédia por trás dela: a apostasia. Endo sofria do mesmo problema na recepção de sua obra, ao ser lançada na cultura fumi-e do Japão. Ninguém entendia os seus livros porque, no seu país, poucos queriam entender o cristianismo — uma religião que sempre foi mal vista entre os japoneses. Batizado aos doze anos, por insistência de uma mãe agonizante, Endo ficou com as marcas de uma fé que se alimentava de uma dúvida constante. Sua simpatia não estava entre os crentes que têm a certeza da sua fé — mas sim entre os crentes que nunca pararam de questionar. Neste sentido, a apostasia — o ato de negar a fé cristã e, consequentemente, a existência do Espírito Santo, o pecado mortal, de acordo com o próprio Jesus — foi o eixo de sua problemática romanesca como católico praticante, japonês e, principalmente, escritor. Em O silêncio, por meio de uma técnica narrativa depurada, ele mostra as agonias do padre jesuíta ao apostatar o Cristo que venera ou, se não fizer isto, a de deixar que os fiéis japoneses morram pelas mãos de autoridades feudais que nada devem aos Auschwitzs e aos Gulags do século XX. Para atingir tal efeito, usa a linguagem seca, sem adornos, em um universo de sons e cheiros que perturbam as dores dos corpos e que também é indiferente aos suplícios dos mártires. Sentimos o silêncio de Deus como um fato inevitável, que esvazia as nossas certezas e chegamos à conclusão de que talvez o próprio Cristo faria o mesmo que Sebastião Rodrigues para salvar o seu rebanho. Com o poder do grande romancista, Endo medita sobre um Deus distante e difícil, eficiente nos detalhes, disfarçado de silencioso — e que só alimenta a fé do crente questionador com os artifícios já anunciados por James Joyce (outro que aprendeu muito com os jesuítas): o exílio e a astúcia. Estes são os temas principais de outro livro de Endo, Samurai, escrito como resposta aos sofrimentos descritos em O Silencio. Aqui, ocorre o inverso da odisseia do padre Sebastião Rodrigues: se em O Silencio, era o Ocidente que mergulhava no coração das trevas do Japão, agora, em Samurai, é o Japão que faz sua peregrinação no centro do poder ocidental, com três samurais (entre eles, o personagem-título verídico, Hasekura Rokuemon) que embarcam numa missão diplomática para intermediar uma negociação comercial entre os senhores feudais japoneses e o reino católico da Espanha. Como é normal na perspectiva fatalista de Endo, a viagem termina em fracasso — com o adendo de que, durante o percurso desses três emissários, o Japão decide a intensificar a perseguição aos cristãos japoneses. Por uma ironia do destino, Rokuemon e seus companheiros se converteram ao catolicismo para manter o sucesso da missão — e, logo que voltam para casa, percebem que as coisas não são mais as mesmas. O samurai mergulha no lodo da cultura fumi-e, ao mesmo tempo em que percebe que, apesar da sua conversão não ter sido sincera, ainda assim a imagem do Cristo Sofredor começa a assombrar a sua vida — o que resulta em um impasse trágico. Assim como Shusaku Endo, Makoto Fujimura parte da imagem do Cristo Sofredor para mostrar que a arte religiosa dos séculos XIX-XX deve superar o mero formalismo da estética moderna e retornar às fontes de uma arte sacra, voltada ao transcendente, sem academicismos, e que reafirma o poder do artista em um mundo completamente traumatizado por seus respectivos Marcos Zero. Fujimura escreveu, na introdução às pinturas que acompanham uma versão ilustrada dos Evangelhos (feita para celebrar os 400 anos da publicação da Bíblia na versão do Rei Jaime I, a “King James”), que sua obra deve ser entendida como “uma ambiciosa oração dirigida às gerações futuras”, as quais serão obrigadas a transcender o hedonismo esteticista das artes plásticas e criar algo que supere a jornada das cinzas que sobraram do nosso sofrimento nas últimas décadas. Mas a figura de Cristo não é apenas marcada pelo sofrimento, como argumentam Fujimura e Endo. No Brasil, o artista Claudio Pastro (1942–2016) mostrou que há um poderoso contraponto que também responde à nossa cultura fumi-e. No admirável O Cristo Pantocrator, a pesquisadora e professora Wilma Tommaso conta a história secreta do ícone ortodoxo que mostra Jesus não como o Servo Sofredor, e sim como o Imperador do Cosmos, coberto de glória e capaz de mostrar a quem for vê-lo que ele é a única majestade em todo o seu esplendor. Contudo, ela vai além: por meio de uma análise exaustiva do trabalho de Pastro, insere o Pantocrator — com suas influências da arte românica, da arte sacra e da iconografia ortodoxa — na sociedade brasileira, elaborando uma ousada conexão do país com o que aconteceu na própria História daquilo que conhecemos como “civilização”. De acordo com Tommaso, a importância da obra de Claudio Pastro não é apenas a recuperação de um ícone perdido no tempo. É o “retorno às fontes”, segundo as instruções do Concílio Vaticano II, sem perder, contudo, o contato com a modernidade e com o próprio Brasil, absorvendo elementos intrínsecos à nossa história, como os traços africanos e a plasticidade rústica, numa síntese que busca o universal e o particular, o sagrado e o profano, sem deixar de fazer uma crítica ao nosso ambiente fumi-e tupiniquim. No centro disso tudo, há a percepção de que o ícone do Pantocrator não é uma mera imagem datada, e sim a manifestação perene (e moderna) da presença de uma pessoa única que se comunica com os fiéis (e os infiéis), exigindo nada mais, nada menos que a pura contemplação do seu ser — algo com o qual Makoto Fujimura também concorda em relação ao seu próprio trabalho. Tanto o Cristo Sofredor como o Cristo Imperador são lados distintos desta mesma experiência chamada Encarnação — o encontro do humano com o divino diante do inevitável confronto com a morte. Fujimura, Endo e Pastro mostram que a função do artista é sempre retratar a comunicação inefável com este mistério maior que, entretanto, também incorpora um sofrimento quase impossível de ser articulado — mas que nos faz descobrir uma terrível beleza oriunda dessas obras. Porque, parafraseando a escritora norte-americana Flannery O´Connor, a arte em geral deve realizar esta travessia para vencer o problema do Mal. E arremata com São Cirilo de Jerusalém: “O dragão senta-se ao largo da estrada, olhando aqueles que passam. Tenha cuidado para que ele não o devore. Nós caminhamos ao Pai, mas antes é preciso passar pelo dragão”. Quem caminha nesta estrada sabe como pode ser fascinante o olhar do monstro. Com suas obras-primas, Endo, Fujimura e Pastro nos avisam que, para não sermos devorados, precisamos reencontrar a muito custo a liberdade interior do verdadeiro silêncio. A partir daí, a arte deixa de ser uma busca do belo pelo belo, transformando-se no silêncio semelhante a uma ferida dolorosa. No fim, ela é o anúncio da única vitória que nos resta, apesar de todos os obstáculos ao redor, pronto para preencher esses espaços ocultos e ainda desconhecidos do nosso coração. Quem quiser colaborar com o meu trabalho, além do valor da assinatura desta newsletter pessoal, pode me ajudar por meio do pix: martim.vasques@gmail.comE quem quiser apertar o botão abaixo só para fazer a minha felicidade - e manter essa newsletter de modo mais profissional, be my guest: You're currently a free subscriber to Presto. For the full experience, upgrade your subscription. |
Total de visualizações de página
quarta-feira, 10 de setembro de 2025
O Trauma Do Sagrado
Assinar:
Postar comentários (Atom)

Nenhum comentário:
Postar um comentário