Livros eternos - a importância de reler
Por annakroiss
Alguns dias atrás um assinante do As Horas de Anna levantou uma questão interessante: em um comentário ele perguntou se eu, como escritora e leitora, tinha assim como um dia falou o grande Nelson Rodrigues, alguns livros que fossem especiais na minha estante e memória, pois segundo Nelson, deve-se reler mais do que ler.
Ler essa pergunta (seguida de uma afirmação) foi como uma ordem subentendida: lá fui eu reler dois destes alguns poucos livros preferidos. E agora gostaria de compartilhar quais são, para mim, esses que guardo como joias na memória (e no coração).
Primeiro, devo começar com aquele que considero meu livro preferido, ainda que seja sempre doloroso escolher livros e filmes favoritos - esse de fato eu sei que é o primeiro lugar.
O morro dos ventos uivantes, de Emily Bronte
Minha história com esse livro vem de muito tempo. Quando era pequena, haviam alguns livros muito antigos na minha casa, daqueles de capa preta ou vermelha com desenhos dourados; ou aqueles verdes escuros de tecido, que soltavam os fiapos da lombada.
A primeira edição que tive contato com O morro dos ventos uivantes foi justamente essa: capa preta, dura e com ilustração dourada. Infelizmente aquela peça em especial se perdeu com o tempo, mas a obra permaneceu.
Li a história de Emily Bronte a primeira vez aos quatorze anos, e acredito que seja justamente ela que até hoje ainda me proporciona enredos trágicos para quase tudo que escrevo. Claro que a profundidade de Wuthering Heights é imensa demais para uma adolescente conceber, mas algo ali se criou - e depois reli o livro aos dezenove, e depois mais algumas tantas vezes - a última foi no ano passado. Concluo fatalmente, ainda nesse primeiro exemplo, que Nelson estava certo no que disse: é preciso reler! O morro dos ventos uivantescresce e cresce exponencialmente a cada nova leitura que faço. Por quê? Porque meus dias passaram desde a primeira leitura. Muitos anos. Naquele meu primeiro contato com a narrativa trágica de Catherine e Heathcliff me apaixonei apenas pela história de amor e por sua fantasmagoria - meu primeiro contato com o gótico! Depois, na segunda leitura, percebi novas questões no livro, como as temáticas de preconceito. Desta última vez, como não poderia ser diferente, foram tantas coisas novas que me surgiram e me assaltaram! Algo que antes, quando muito jovem não havia dado importância: o tempo passa para todos, e com ele pessoas e histórias se vão - as vezes pode ser tarde demais para pedir desculpas, para tentar viver alguma coisa que se queria tanto. As pessoas guardam mágoas, guardam palavras, guardam cada ação nossa, para sempre. O morro dos ventos uivantes é um poço, imenso e lamacento, de sentimentos, de repressões, de interesses financeiros, de competição de egos, de pessoas que assistem a história das outras por mais de cinquenta anos. Alguns sempre prontos a perdoar, outros eternamente amargurados.
A história de Cathy e Heathcliff é eterna. A elaboração de Emily Bronte, que publicou essa sua história quando tinha vinte e nove anos é infinita - cada nova leitura se descobre algo, tapas na cara saem do livro muitas vezes para te espancar - o livro fala conosco, e fala mais e mais forte, porque somos mais velhos agora, porque entendemos as dores e os receios de cada um dos seus personagens.
O morro dos ventos uivantes é um livro sem fim, que lerei para sempre.
[Claro, tem ensaio sobre essa obra AQUI]
A metamorfose, de Franz Kafka
Quando li a primeira vez a história de Gregor Samsa fiquei da mesma forma que todo adolescente fica ao ler essa trama: revoltada!
Que pai maldito esse coitado tinha. Que triste é não poder sair daquela cama. Que família canalha! Bem, eu tinha dezoito anos quando li - via o mundo como uma grande injustiça - e hoje? Hoje vejo ainda mais.
A metamorfose é outra obra que li algumas tantas vezes, e que cada nova leitura descubro outras dores, mas como uma prova de que o tempo passa, hoje acho graça na desgraça, coisa qual sei não ter enxergado na primeira e segunda vez. Hoje, depois de ter lido tantas narrativas infelizes da literatura russa, e tantas histórias mórbidas da literatura japonesa, vejo esses poucos dias desgraçados de Gregor como uma maldição da qual todos estão sujeitos. De um tempo pra cá na verdade enxergo o protagonista de Kafka não como aquele inseto que eu via quando mais jovem - hoje penso nele como alguém que talvez esteja afundando numa profunda depressão - ele se vê como monstruoso, repulsivo, nojento. A família que queria ajudá-lo numa primeira instância, o isola e não vê a hora que ele apenas desapareça, sem que deixe muitas marcas ou lembranças. Gregor é um peso! Um homem que talvez acordou e não se viu mais com estímulos e confiança - é só um inseto.
Há poucos dias postei aqui um ensaio sobre a história de Osamu Dazai em seu O declínio de um homem - um outro desgraçado. Novamente a questão da releitura importa tanto para nossa rotina. A Anna de hoje consegue ver dezenas, centenas de Gregors ao longo da história da literatura. Muitos são os infelizes, os injustiçados, os que desistem de tudo. Yozo, de Dazai é mais um deles que conheci há pouco, e espero conhecer outros tantos ao longo dos anos, e sempre que puder, revisitarei a história do rapaz inseto isolado em seu quarto, e será feliz dentro da minha cabeça poder compará-lo com outros novos que vier a conhecer.
Ainda sobre os infelizes: eu gosto muito deles!
O capote, de Nikolai Gógol
Gogól foi meu primeiro contato com a literatura russa. Ele é um veneno mortal! O capote me fez adentrar ao mundo da tragédia cômica que é o dia a dia. O pobre do personagem Akáki Akákiévitch é um funcionário público de baixo escalão que cai na infeliz ideia vendida por um salafrário de que se ele tivesse um casaco novo e impecável sua vida iria mudar. Ele seria finalmente protagonista da própria história. Akáki nem imaginava quantos apuros e dívidas ele iria se meter por conta desse maldito capote/casaco.
Gógol não erra numa só linha dessa pequena novela (ou conto longo), tudo é justamente como acredito que ele pensou: é constrangedor do começo ao fim - temos pena e raiva do coitado do homem.
O capote é muito importante para mim pois me abriu os olhos para o conceito da literatura russa da “graça na própria desgraça” - se não fosse este livro, talvez eu não tivesse ido procurar tantos outros que li depois, tantos outros que fico feliz por ler e ver o espírito de Gógol neles. Cada nova leitura deste livro é ainda mais engraçada, ainda mais perturbadora - cada vez mais temo ser, ou cair nas ciladas que tanto julguei estúpida em Akáki.
É a Ales, de Jon Fosse
Quando eu julgava ser tarde demais para colocar mais um autor, ou um livro na minha estante mental de preferidos, eis que surge Jon Fosse em 2023, com a história de uma mulher que sofre pelo sumiço do marido que nunca mais voltou e ninguém sabe para onde foi e o motivo.
”Por que ele havia sumido para sempre? Sumiu para sempre. Por que teve que sumir para sempre? Ele estava aqui há pouco e agora tinha sumido para sempre.”
Para além da história que machuca a cada frase, Jon Fosse foi uma surpresa narrativa: ele escreve como quem pensa e transcreve o que pensa. Como é possível, mesmo com tantos autores que fazem esse estilo de fluxo de pensamento ele ainda assim conseguir ser diferente de tudo? Talvez eu veja nele toda essa grandeza porque gosto desse tom triste e sem explicações de todas as suas histórias. Talvez não seja só pelo fluxo da escrita. Acho que amei Jon Fosse (e tenho tudo dele) justamente porque consigo ouvir o que o autor pensa no que ele escreve - talvez as pessoas que achem ele tedioso e cansativo (e não são poucas) não tenham lido e assistido tantas coisas tristes como eu li e assisti - e gosto, muito. Cada vez mais.
Todos os seus livros conversam entre si, e me sinto próxima de sua intimidade criativa por isso. Gosto de sentir isso. Jon Fosse foi Nobel de Literatura em 2023, e desta vez fiquei feliz pelo ganhador.
Fosse é brilhante, é inovador. Gosto dele ainda mais por ter sido, depois de tanto tempo, um novo autor na minha lista de preferidos.
Demian, de Hermann Hesse
Com Hesse tenho uma relação engraçada. Eu consigo perceber que ele, o autor, é algo superestimado quando somos jovens, tal qual Sylvia Plath (ainda que continue os amando) e outros. Consigo perceber que as duas releituras que fiz depois da primeira vez foram menos impactantes - mas por que acho ele eterno? Neste livro há um protagonista chamado Sinclair, e não Demian - Demian é seu rival, amigo, paixão, objeto de desejo mimético. Ao ler Demian, vi no protagonista Sinclair algo que nunca tinha lido até então: a criança temia por todas as coisas. Era medroso, sofria fora de casa a todo tempo. O mundo lhe assustava, apenas sua casa era um lugar seguro. Por que esse livro foi diferente pra mim? Por que eu era justamente como Sinclair quando criança. Não sei explicar as razões, talvez nunca tenham existido - mas sei exatamente como é aquela sensação de angustia constante em ser criança. A infância é assustadora, parece não acabar nunca.
Não conheço na vida, em meu ciclo de amigos, alguém que tenha sentido isso - na verdade sempre dão risada dessa história - mas Sinclair, pelas mãos de Hermann Hesse, sabe o que penso.
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Quando já planejava escrever aqui todas essas confissões (e porque não indicações? comprem na Livraria [trabalhar cansa]) , eis que semana passada pego para rever Donnie Darko - filme que havia assistido há bons anos atrás - e então, numa dada cena, um diálogo me aparece:
Uma professora conservadora e um tanto histérica quer banir da grade escolar um livro que pode estar influenciando mal os jovens alunos.
Quem é esse autor? Graham Greene!
Em resposta à professora, a mãe de Donnie Darko diz em tom debochado:
"Você ao menos sabe quem é Graham Greene?”
Eu, a Anna de onze anos de idade quando viu esse filme a primeira vez nem imaginava quem era esse autor - mas nesses poucos dias atrás, quando revi o filme, essa cena me caiu como se vista pela primeira vez. Senti orgulho da mãe de Donnie. Me senti íntima da personagem por conhecer o autor que ela conhece, o qual ela gosta e defende.
Com isso, concluo, cada dia mais, que reler livros e rever filmes é sempre importante - ainda mais quando longos anos passaram. Somos novas pessoas quando relemos ou reassistimos algo - ainda que esses objetos gravados no tempo sejam os mesmos, eles não são nunca os mesmos para nós.
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