Diario d’Italia, quinta parte Lecce, quinta-feira, 24 de abril. Hoje, a poesia de Leopardi me visitou na varanda do apartamento alugado por um curto período. De onde estou, no centro de Lecce, o movimento das andorinhas no céu da tarde me lembra de "Alla primavera, o Delle favole antiche" (À Primavera ou: Das Fábulas Antigas – ver trecho da tradução de Álvaro Antunes ao final). Porém, se o poema está embebido da melancolia do poeta italiano (como quase tudo que escreve), não há lugar para esse sentimento nessa curta temporada aqui. Pelo contrário, deixo-me invadir por esse pulsar ao ritmo da estação que nos circunda, desde que deixamos Polignano a Mare para nos estabelecer por um curto período aqui em Lecce. Tenho certeza de que não sou como “O Pardal solitário” de Leopardi, e o poema me relembra a mágica que é fazer esta viagem como um casal de idosos – aos 70, comemoramos 50 anos juntos –, então, só nos apegamos às advertências que nos transmitem esses “bandos de pássaros festivos” e esquecemos a solidão e a melancolia do poeta de Recanati: “Do vértice que aguça a torre antiga E flutua a harmonia pelo vale. Acompanho os voos rápidos e circulares das andorinhas, desde a sacada do meu Air BnB, e por frequentes e graciosos eu os tomo como um espetáculo à parte (e particular) que acompanha a horinha do entardecer em que minha mulher e eu degustamos um Prosecco com algumas castanhas.
https://www.chieselecce.it/ ). Deambulamos, como diziam os antigos cronistas, sem o rigor do turista de guia e sem guias de turistas. O mais rigoroso pesquisador ou o turista mais disciplinado, visitariam o Duomo (Catedral), construção de 1114 e reformada na metade do século XVI por vontade do bispo Luigi Pappacoda e a ciência e arte do arquiteto e escultor salentino Giuseppe Zimbalo que soube, segundo o folheto que me instrui, um aspecto monumental à nova praça, digno de um dos mais importantes centros artísticos e culturais do sul da Itália. De fato, a pedra com que foram feitos os edifícios do centro brilham ao sol da Primavera e proporcionam um visual único, talvez só comparável ao brilho de Pontignano a Mare, porém mais exuberante, pela sua unidade e sua exuberância barroca que proporciona a pedra de Lecce[1]. Arrependi de ter planejado apenas quatro noites para a estada em Lecce; Nosso roteiro não tem horários nem pressa. É a cidade que nos guia. A beleza da arquitetura barroca nos surpreende a cada passo, a luz do sol sobre o conjunto arquitetônico nos surpreende e encanta. Uma simples caminhada me leva a descobrir uma livraria próximo à praça Santo Oronzo, depois de ter sido surpreendido pelo badalar dos sinos a hora do Angelus, quando uma prece à Ave-Maria se elevou nos microfones locais. Fui de novo surpreendido quando já estava no caixa para pagar por dois volumes da obra do poeta Recanatese, quando ouvi uma banda e um burburinho de pessoas que acompanhavam os músicos. Era uma procissão à Nossa Senhora. Deixei a livraria Feltrinelli pra trás, quando ouvi o som de instrumentos de sopro e de tambores. Segui a música, curioso, e me vi acompanhando a procissão em honra à Nossa Senhora. Acompanhei-os com enorme devoção e alegria interior. As ruas se encheram de fé e rezas, ao som dos músicos e dos arranjos florais, que me tornaram parte de algo maior, uma tradição que transcende o tempo e a modernidade, unindo a comunidade de uma forma única. Mas não apenas os olhos e os ouvidos, também o paladar se rende a Lecce. A cada refeição, uma nova surpresa. Embora minha mulher cozinhasse no apartamento, vez por outra nos demos à conhecer restaurantes locais. Em uma dessas saídas, na hora do almoço, um restaurante próximo ao nosso apartamento nos serviu um prato que era, antes de tudo, uma tela. Peças de um peixe espada, perfeitamente cozidas, repousavam sobre um molho cremoso, adornado com toques de um pesto verde, talvez manjericão, e outro, intensamente vermelho, com o sabor da cozinha local. Era a combinação da delicadeza do mar com a força da terra, uma experiência que nos fez sentir a alma da região em cada porção. Os sabores da mesa se juntavam aos do céu límpido e azul de Lecce, e aos espetaculares pôr-do-sol que se gravavam em nossas retinas cansadas, mas satisfeitas. Naturalmente, repetimos a experiência e o prazer da culinária local, no mesmo restaurante próximo à nossa morada temporária. Fomos muito bem tratados na cidade e ficamos com vontade de prorrogar nossa estada. As pessoas de Lecce, com sua gentileza e acolhimento, tornaram a experiência ainda mais rica. Apreciando o céu e as andorinhas de Lecce, penso que o voo delas é passageiro como o tempo. Como diz Leopardi, esta “primavera odoroda inspira, tenta o coração de um velho que aprende em plena flor dos anos”. Bom registrar e viver intensamente este momento - é a minha fábula, a minha Primavera, minha porção individual de sol e poesia. Aos 70 anos, posso dizer que não sou um pardal solitário e que esta é a nossa primavera, nossa fábula, a poesia de nossas vidas, envelhecendo juntos. Trecho do poema À Primavera (ou Das Fábulas Antigas) – Giacomo Leopardi, trad. Álvaro Antunes. Leia o poema original neste link. [1] Pietra leccese que vem naturalmente do solo e é extraída de cavernas subterrâneas em enormes pedreiras a céu aberto de até cinquenta metros de profundidade, segundo a Wikipedia. O senhor(a) é atualmente um(a) assinante gratuito(a) de Livraria Trabalhar Cansa. Para uma experiência completa, faça upgrade da sua assinatura. |
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sábado, 13 de setembro de 2025
Diario d'Italia, quinta parte
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