Obrigado pela sua leitura! They attend all the lectures on Post-War Problems, W.H. Auden, “A Healthy Spot”. 1. E assim voltamos à tradição da festa literária da FLIP em Paraty, uma cidade fluminense de casas antigas, ruas cruéis para qualquer um que ama os seus pés e uma vida cultural tão ativa que dura somente cinco dias — por coincidência, o exato período do evento. Seria mais adequado que este evento acontecesse em Abril, “o mais cruel dos meses”, como dizia T. S. Eliot. E por que isso? Esta é uma pergunta que o leitor deve fazer para si mesmo ao desconhecer o uso de tal expressão ao designar um evento que sempre trouxe sorrisos aos seus realizadores. A crueldade está em dois fatores: primeiro, vendem gato por lebre; e segundo, criam no público sério e ávido por uma literatura decente o que alguns chamariam de “dissonância cognitiva”. Segundo a própria FLIP, o seu objetivo sempre foi proporcionar discussões de alto nível com convidados nacionais e internacionais. Já estiveram aqui ninguém menos que Paul Auster, Ian McEwan, Salman Rushdie e Tom Stoppard; da parte que nos cabe neste latifúndio, tivemos Chico Buarque (o ídolo dos organizadores; já foi chamado duas vezes), Roberto Schwartz (com seu Machado de Assis marxista avant la lettre) e Davi Arrigucci, Jr. (que falou sobre Manuel Bandeira como se fosse o arauto do nacionalismo tupiniquim, o que é uma piada por si mesma); além de homenagens a Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Nelson Rodrigues, Ana Cristina César (nossa tentativa mal sucedida de ser a Sylvia Plath do Bananão, mas sem um Ted Hughes para chamá-lo de seu), Lima Barreto e Hilda Hilst. Sempre houve, sem dúvida, um belo ideal: o de colocar o Brasil na rota dos eventos cosmopolitas, transformando-o em uma nação que, segundo ouvi uma vez da boca de um estrangeiro, não fosse apenas um território de canibais. Contudo, como dizia Herman Melville, é melhor dormir ao lado de um canibal lúcido do que de um cristão bêbado. E, neste caso, o que é uma tentativa de querer se mostrar como “sofisticado” torna-se uma armadilha: a de sermos vistos como os “mestres à margem da civilização”. Eis o nó górdio: a verdadeira literatura, que vai de Shakespeare a Thomas Pynchon, passando por Guimarães Rosa e Osman Lins, preocupa-se com aquilo que a filosofia chama de “comunicação substancial”. Ela lida com dois temas: a vida e a morte — e a única coisa que o escritor sério sabe sobre elas é que a última sempre ganha o jogo. Portanto, a verdadeira literatura é uma obsessiva reflexão sobre a perda, o sofrimento, a dor — e sobre o fracasso. Quando um romance, um conto ou um poema mexem com as entranhas e a mente de um leitor, é porque o tema do fracasso foi abordado e superado com elegância estética, algo que só o grande artista consegue realizar. Agora imaginem a cena: um “público-alvo” composto por aquilo que acredita ser a elite do país. Eles estão em Paraty em busca de um sonho: ter, em cinco dias, o melhor da literatura contemporânea. O sucesso exala da epiderme de cada um deles — ou, pelo menos, da maioria que está à procura desta aura que transforma alguém em algo que nunca foi (e nunca será). Eis a pergunta: estas pessoas estão preocupadas em fracassar? É claro que não — e aí está a crueldade do evento. Em 2016, por exemplo, a FLIP chamou três nomes que namoram há tempos com o tema do fracasso: Svetlana Akeksiévich (Prêmio Nobel em 2017 e autora de dilacerantes livros-reportagem que tocam em temas nem um pouco agradáveis, como Tchernobyl e o governo opressor de Vladimir Putin), Karl Ove Knausgaard (eficiente narrador que transformou a sua vida em “autoficção”, principalmente ao contar suas derrotas morais) e Irving Welsh (romancista inventivo, sem dúvida, capaz de transformar a morbidez de se viver no submundo da Inglaterra em algo extremamente divertido, graças ao poder da sua linguagem). 2. Como se não bastasse tal fascínio pelo fracasso dos outros, seis anos antes fizeram a mesma coisa com ninguém menos que Gilberto Freyre, quando o ex-presidente e eterno intelectual Fernando Henrique Cardoso proferiu a palestra de abertura, indicando que tinha lido ninguém menos que o neo-conservador [sic] Leo Strauss — o que mostra que, naquela época, o brasileiro comum já vivia em um mundo completamente dominado pela newspeak de George Orwell, e não sabia nada disso. Infelizmente, a última opção era a mais provável. Naquela palestra de abertura da FLIP, FHC discorreu sobre Freyre, um autor que deveria ser homenageado, sem dúvida nenhuma, mas que acabou por ser esculhambado por todos que resolveram discuti-lo. Não por culpa do morto, dono de uma obra que ficará acima de tudo o que já foi dito sobre ele, mas sim por culpa dos seus “admiradores”, a começar pelo ex-presidente da República. Até hoje, nunca se soube o que ele queria ao fazer sua palestra sobre o autor de Casa Grande & Senzala. O texto, publicado no Estadão.com, é um primor de scholarship acadêmica a lá USP, com a clareza de explanação, as fontes bem citadas, o raciocínio que pende entre a admiração e o ceticismo, características da turma da antiga Maria Antônia. Enfim, tudo aquilo que sempre se esperou do príncipe dos sociólogos. Contudo, a palestra em si, feita em um “clima descontraído de bate-papo” (uma destas expressões que o jornalismo cultural usa quando ninguém entende direito os conceitos expostos), mostra um FHC que insiste classificar Gilberto Freyre como “conservador” [sic] e “racista” [sic], termos que, no nosso mundo possuído pela cultura identitária, são claramente sinônimos depreciativos. Ora, quem viu e depois leu a palestra achou que ambas as versões foram escritas por duas pessoas diferentes. Daremos o benefício da dúvida a Fernando Henrique: acreditou-se que ele praticava a linguagem cifrada descrita por Leo Strauss em seu Persecution and the art of writing e enganou todo mundo. Mas ele não fez isso. Tudo bem, é de se admitir que a oralidade de uma palestra pode levar a uma certa imprecisão. E nisso o ex-presidente não pode ser responsabilizado, pois, afinal, não deve forçar o público a compreender exatamente o que ele queria dizer. Mas a reação do jornalismo cultural que fez a cobertura do evento naquele ano ecoou a versão woke da palestra, chegando ao ponto de, olhem só, repetir sem pensar (e, o mais sério, sem checar) os bordões de “racista” [sic] e “admirador de regimes fascistas” [sic] a respeito do coitado do homenageado. O problema desta situação é que a obra de Gilberto Freyre não admite compartimentos ideológicos. Neste caso, é de admirar a iniciativa da FLIP ao homenagear um sujeito de matizes tão complexos. Porém, como o próprio Freyre dizia, ele não era um sociólogo — e sim um antropólogo que, ao iniciar novos métodos de pesquisa (reconhecidos por FHC em sua palestra na versão escrita), unia o homem com a sociedade e apresentava um novo painel cheio de contrastes e paradoxos. E o paradoxo, como se sabe, confunde a mente de muitas pessoas. Para expressá-lo, Freyre decidiu investir em um estilo proustiano, que recuperava simultaneamente a memória pessoal e coletiva, usando de toda a plasticidade da língua portuguesa para que o leitor tivesse a mesma impressão de que o tempo, este bichinho fugidio, seria recuperado na intensidade da experiência histórica original. O impasse de FHC — uma característica que o faz ser considerado o nosso Hamlet tupiniquim — é o mesmo impasse da nossa elite acadêmica e intelectual que, por sua vez, contamina a curadoria literária da FLIP. Quando encontramos uma obra única sobre a qual a mente humana não pode abarcar sem cair nas gavetinhas do pensamento — a tal “poeira da glória” que Otto Lara Resende antecipou com assustadora presciência —, não sabemos se devemos nos curvar a ela, com a humildade necessária, ou desprezá-la como os adolescentes que querem provar a sua equivocada originalidade. 3. Uma das vítimas deste fenômeno foi a homenageada de 2018, Hilda Hilst. Quatorze anos depois da sua morte, ocorrida na madrugada do dia 4 de fevereiro de 2004, em Campinas (SP), era a hora de ter uma avaliação objetiva do valor da sua obra. Mas, ao que parece, independentemente do luxo da reedição dos volumes de poesia e prosa, lançados pela Companhia das Letras nos últimos meses (ainda assim, muito inferiores às edições feitas pela Editora Globo, supervisionadas por Alcir Pécora), ninguém que fez parte da FLIP — seja como participante do evento, seja como público — pretendeu estabelecer o correto entendimento do que ela realmente quis dizer com seus escritos, algo do qual a recente fortuna crítica se esquiva com frequência. Portanto, sem firulas: na poesia, Hilda é absolutamente genial, uma artista que faz parte da mesma tradição de poesia metafísica que antes tinha poetas como Cecília Meirelles, Manuel Bandeira, o Drummond de Claro Enigma, e, entre suas contemporâneas, Orides Fontella e Adélia Prado. Há, sem dúvida, um toque ali e acolá de uma poesia do sagrado, cujo representante maior é Jorge De Lima; mas entre Deus e as reflexões sobre o instante, Hilda prefere estas últimas porque sempre foi obcecada com o transitório, com a morte e com as respostas possíveis que a indesejada poderia lhe dar se a menina nascida em Jaú em 1930, filha de um fazendeiro que faleceu esquizofrênico, tivesse sido sua companheira constante. Felizmente, não foi o que aconteceu. Se nos seus primeiros livros, Hilda ainda era influenciada pela dicção de um Drummond ou até de uma Dora Ferreira da Silva, junto com homenagens a Camões e às “cantigas de amigo” da Idade Média, a partir de 1980, com o fenomenal Da Morte. Odes Mínimas até o derradeiro (e brilhante) Cantares do sem nome e de partidas (1995), ela acrescenta algo aos seus versos que jamais foi sonhado nas nossas letras (com a possível exceção, é claro, deste monolito que foi a obra de Bruno Tolentino). Este “algo” é o diálogo com a poesia dos metafísicos ingleses, sobretudo John Donne, Richard Crashaw e George Herbert, da qual Hilda era uma leitora meticulosa e isolada, pois poucos do seu meio literário os conheciam de coração como ela. Dessa forma, tornou-se uma cidadã eleita desta “república invisível” e, assim, usou e abusou dos tópicos desta escola poética, surgida na Inglaterra do século XVII. Estão ali a atração e o diálogo com a morte, a sedução de um Deus que violenta brutalmente a poetisa sem cessar, e a obsessão pelo efêmero, por um tempo que não dará trégua na precariedade do instante. Quando o Sagrado finalmente surge, é algo muito breve — e só a poesia consegue captá-lo, mesmo de maneira frágil. Já na prosa, temos uma intensidade à beira do descontrole, graças à união que Hilda fez com as técnicas de fluxo de consciência de Joyce e Beckett e a temática religiosa agoniada extraída de Nikos Kazantzakis e Ernest Becker (santos supremos do seu panteão particular). Isso não significa que ela era destituída de controle formal. Pelo contrário: em narrativas como “Lazarus”, obra-prima do seu primeiro livro de relatos, Fluxo-Floema (1970), ou na sua estreia na pornografia escrachada de O Caderno Rosa de Lora Lamby (1990), fica evidente que ela dominava a carpintaria literária como poucos, até para embaralhá-la aos leitores mais incautos. Contudo, a intensidade arriscada, que vai de Fluxo-Floema até o estupendo Com Meus Olhos de Cão (1986), perde sua força com os tais “livros de sacanagem”, não pelo assunto em si — abordado como uma sequência da sua procura metafísica, pois aqui a erotização da sociedade é a evidência da inocência corrompida —, mas pelo fato de que ela finalmente se entrega ao seu querido Sagrado sem nenhum anteparo. Isso provoca um retorno ao “mundo como Ideia” em seus escritos, do qual Hilda parece se transformar em uma prisioneira do seu próprio desespero, o que fica evidente em Estar sendo. Ter sido (1997), o derradeiro escrito em toda a sua obra — e é o que a faz ser cooptada pelas modas do momento que ela simplesmente abominava e das quais sua literatura não tem qualquer relação temática (como o feminismo, a transgressão sexual e outras veleidades). Ainda assim, os anos de silêncio que se seguiram até seu falecimento não amorteceram a força do seu legado. Ela continuou presente entre nós, e há coisas a serem redescobertas, como o seu teatro completo que, concebido nos anos conturbados de 1968 a 1970, nos deu oito peças fenomenais, entre elas o milagre que é As Aves da Noite (1969), sobre o martírio do padre Maximilian Kolbe em Auschwitz. Aliás, esta peça talvez seja, junto com o conto “Lazarus”, a chave para entender o que acontecia de fato no interior da alma de Hilda Hilst: sim, ela era uma ave da noite, capaz de voar na escuridão mais terrível, em busca de uma luz difícil de ser encontrada, mas que nos dá breves lampejos em uma trajetória conturbada — como a de todos nós. Isto era confirmado nos gestos do dia-a-dia. Quando era professora visitante na Unicamp no final da década de 1990 — conforme nos conta o escritor Yuri Vieira em seu belíssimo relato sobre o cotidiano de Hilda, O Exorcista na Casa do Sol (José Olympio) —, ela dava uma intrincada aula sobre diversos autores (entre eles, Novalis) e percebeu um aluno inquieto, a coçar as partes pudendas diante da “obscura senhora H”. Com seu jeito sincero e direto, perguntou ao jovem: “O senhor está se sentindo mal? Algum problema?”. Encabulado, o rapaz disse: “Só queria saber o seguinte, professora: a senhora realmente acredita nesse negócio da imortalidade da alma?”. Sem pestanejar, Hilda Hilst respondeu ao pobre coitado: “Eu acredito na imortalidade da minha alma! E, se você não parar de coçar o saco e começar a formar agora mesmo uma alma digna desse nome, não haverá nada que sobreviva à sua morte”. 4. A atitude do aluno imprudente na aula de Hilda é a mesma forma de canibalismo que os nouveaux riches da FLIP praticam não só entre si, mas principalmente com todos os autores homenageados durante a existência deste evento, todos contaminados pela “poeira da glória”. Não há nada a fazer para que se saia dessa dissonância cognitiva, na qual o público espera uma coisa, o escritor dá outra, e ambos saem com a sensação de terem comprado gato por lebre. Entra-se numa espiral de ouvidos moucos, sem saber quem fala com quem e — o mais importante — o que realmente foi dito. Apesar da boa vontade, a FLIP é um sintoma da esquizofrenia literária e cultural que atingiu o Brasil. Escritores celebrados por ela, como Hilda Hilst, Gilberto Freyre e Euclides da Cunha, ruminam sobre o fracasso da existência e o seu público deseja somente o sucesso das vendas e da conta bancária; e, neste panorama, o que sobra para os que desejam a verdadeira literatura é o glaucoma do intelecto. Com isso, fica nítido que há uma recusa ao aceitar o fato de que a literatura não é uma arte para as massas — e também não é para uma elite fascinada por elas que, mesmo assim, reforça o fato de que pouco se importa com a relevância das letras em suas vidas. A prova deste fato é que, em cada painel do evento, a cada ano que passa, a substituição da palavra escrita pela imagem (com a exibição de algum filme) ou com uma performance midiática (sempre com um ator ou de um músico de prestígio) mostra esta ânsia pelo sucesso a curto prazo que corrói a cultura nacional, sem se preocupar com a verdade de que um artista só evolui através dos seus erros e derrotas — e os triunfos devem ser vistos como marcas passageiras de um trabalho do qual ele não será o último a se ocupar. Em resumo: a FLIP jamais perceberá que sucesso e literatura não combinam. Tanto os seus organizadores como o seu público não querem cumprir o único pedido que Hilda Hilst fez ao seu leitor: cuide da sua alma. Incapazes de praticar o único tema sobre o qual a grande escritora meditou durante toda a sua vida, sem exceção, também não terão a sensibilidade de pressentir que, com seus acertos e erros, o voo noturno da arte que se alimenta do nosso fracasso é, sem dúvida, um feito insuperável na poesia brasileira — e uma forma de curar as trevas que ainda dominam o nosso meio cultural. Quem quiser colaborar com o meu trabalho, além do valor da assinatura desta newsletter pessoal, pode me ajudar por meio do pix: martim.vasques@gmail.comE quem quiser apertar o botão abaixo só para fazer a minha felicidade - e manter essa newsletter de modo mais profissional, be my guest: You're currently a free subscriber to Presto. For the full experience, upgrade your subscription. |
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segunda-feira, 4 de agosto de 2025
O Glaucoma Do Intelecto
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