Dormindo entre cadáveres Por Luís Moreira Gonçalves Agosto de 2025 é publicado ‘Dormindo entre Cadáveres’, livro do qual sou co-autor em conjunto com Felipe Parucci. A trama da história centra-se no primeiro semestre de 2021, quando estive num hospital de campanha no Norte do Brasil, na altura, o epicentro mundial da pandemia. Acredito que seja um livro interessantíssimo. Embora isso não seja grande feito da minha parte, mesmo um escritor limitado conseguiria publicar uma história cativante com a matéria-prima disponível. Um dos temas explorado - mas sem o protagonismo que merecia porque não desejava colocar penumbra sobre a pandemia - é o processo que a USP me colocou na altura. Como tal, achei boa ideia escrever um pouco mais sobre o assunto. Para contextualizar, sou médico e doutorado em química, desde 2018 era professor concursado no Instituto de Química da USP. Acho que tinha algum jeito. Tinha imensas expectativas para 2020, liderava um grupo de pesquisa com cerca de 10 pessoas com um projeto FAPESP de mais de um milhão de reais. Em certa medida, estava tudo a correr bem, até que uma ação aparentemente insignificante mudou tudo. O chamado efeito borboleta. Mas, ao contrário do carro que parou em frente ao bar sarajavense onde se encontrava Gavrilo Princip, aqui não sabemos o que aconteceu. Ou alguém caçou um pangolim com um resfriado, ou um aluno de iniciação científica do Instituto de Virologia de Wuhan se contaminou sem querer, ou aconteceu uma outra coisa que nunca saberemos bem, sabemos apenas que afetou, e muito, a nossa vida. Janeiro de 2021, estava a trabalhar há meses em home-office. Recebo um e-mail de Rondônia, contava que a situação era desesperada e que precisavam de médicos. Respondi que gostaria de ajudar. Afinal, não só tinha feito o Juramento de Hipócrates, como, mesmo não sendo brasileiro, também tinha feito o Juramento de Bandeira quando entrei para o CREMESP. Em menos de quinze minutos ligaram-me de Porto Velho. Seria aceite naquela mesma tarde se conseguisse me apresentar no hospital de campanha. Expliquei que a distância me faria demorar algum tempo a chegar. No entretanto, contactei a CERT (Comissão Especial de Regimes de Trabalho) e o chefe do meu departamento. Ambos, compreensivelmente, autorizaram a viagem. Avisei também a reitoria, e aí começou - e desculpem o cliché - o meu calvário Kafkiano. Dois dias depois já estava no Hospital de Campanha da Zona Leste de Porto Velho, a situação era trágica (para quem estiver interessado, recomendo a leitura do “Dormindo entre Cadáveres” já mencionado). Expliquei isso mesmo à reitoria da USP, mas não quiseram saber, talvez porque a floresta Amazônica fica a milhares de quilómetros da Praça do Relógio, e acusaram-me de “acumulação ilícita de cargos”. Ofereci todas as soluções possíveis: a) suspender o meu regime de dedicação exclusiva, mesmo com prejuízos financeiros pessoais; b) devolver o meu salário da USP ou o doar a uma qualquer instituição pública; c) fazer uso dos meus dias de férias; d) solicitar uma licença sem vencimento; e) ou qualquer outra proposta que a reitoria tivesse. Um procurador respondeu que nada disso seria possível, porque eu ainda estava nos três anos do probatório. Ou seja, teria de esperar uns meses. Ainda pensei em enviar uma mensagem ao Corona, a pedir que esperasse, que só começasse a matar gente lá para junho ou julho. Mas não foi uma solução viável. Também não sugeriram qualquer alternativa e o parecer terminava com: “os fins - por mais nobres e altruístas sejam - não justificam os meios”. E o autor não estava a citar São Tomás de Aquino na sua oposição a Ovídio, quando o doutor da igreja afirma que a moralidade de uma ação não depende apenas do fim desejado, os meios utilizados também têm de ser morais. Não, estava a parafrasear um artigo seu no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (talvez uma adaptação do TCC) em que fala do Capitão Nascimento (sic). A conclusão era óbvia: da mesma forma que o Capitão Nascimento do BOPE não pode torturar para obter informações da localização de um traficante, um professor da USP não pode desrespeitar o regulamento interno para tentar salvar vidas. Ou seja, tentaram que eu sentisse que as minhas ações não eram só ilegais mas também imorais. Não vou entrar em profundas discussões jurídicas ou teológicas sobre a lucidez e sapiência deste parecer, feito na tranquilidade de casa enquanto eu estava na linha da frente. Mas posso dizer que é fácil discordar fazendo uma interpretação mais atenta do Artigo 37º da Constituição de 1988, por algum motivo a constituição tem o cuidado de especificar algumas alíneas para profissionais de saúde. Além de que, convenhamos, o objetivo inicial do legislador, o famoso espírito da lei - será que ensinam hermenêutica jurídica na Sanfran? - não era, de todo, punir médicos que fossem arriscar a sua própria vida para salvar outros numa pandemia, pois não? A reitoria apelou que voltasse para São Paulo, era importante para eles que eu voltasse para o meu sofá. Mas, para mim, o abandono de pacientes em risco de vida parecia-me uma transgressão bem mais grave. Final de março de 2021, no dia em que o número de mortes atingiu um recorde tanto no país inteiro (3600) como no Estado de São Paulo (1193) recebi um e-mail avisando que iria ser iniciado um processo administrativo disciplinar (PAD) visando o meu despedimento a bem da função pública. Lembro-me desse dia, eu próprio tive vários óbitos no Hospital de Campanha, foi horrível. Assim, quando mais precisava do apoio da USP, foi quando ela espetou uma faca afiada entre a oitava e a nona costelas, no lado esquerdo das costas. Fiquei desolado. Não era esse o comportamento que eu esperava de uma universidade pública que eu muito prezava no meio de uma calamidade de saúde (e, na altura, eu ainda não tinha descoberto que, aparentemente, existiam imensos médicos da Faculdade de Medicina que trabalharam durante a pandemia, mas alguém escreveu que estavam apenas a fazer “consultadoria” então não houve problema). Senti-me enganado, se soubesse que a USP era assim nunca teria aceitado um lugar de professor em primeiro lugar. Incomodado, pedi exoneração. Mas o processo não acabou com a minha saída do quadro. Ainda estava sobre a mesa transformar a exoneração em despedimento a bem da função pública, que, na prática, me impediria de voltar a ser concursado do Estado (o processo pode ser lido no site da ADUSP). Disseram-me, “off the record”, que não devia ter avisado a reitoria. Não existe cruzamento de dados entre a fazenda do Estado de São Paulo e do Estado da Rondónia, ninguém viria a descobrir. E, mesmo que porventura viessem a descobrir, eu só teria de devolver os salários acumulados indevidamente; e, vida que seguiria. Mas eu achava que não tinha motivo para sigilo, acreditava que o que fazia era o correto. Ao longo deste processo ouvi, mais do que uma vez, de funcionários da universidade, que gostavam de mim, a arrepiante frase: “estou só obedecendo a ordens”. Acredito que não reconheciam os ecos históricos, senão, pelo menos, teriam usado uma construção frásica diferente. Tentei também, sem sucesso, parar o PAD judicialmente, de forma bem resumida, e lembre-se o leitor, que foram muitos meses, e tive de ler muita letra para fazer esta súmula de leigo: 1ª instância: não temos competência para avaliar inconstitucionalidade, somos a primeira instância; 2ª instância: estamos aqui para avaliar execução técnica da primeira instância, fizeram tudo certo; 3ª instância (Supremo Tribunal Constitucional): um PAD não é assunto suficientemente importante para a nossa consideração. Confesso que até a mim me deu vontade de rir… No momento em que escrevo, espero uma decisão final da USP. Apesar de, supostamente, pelo regulamento interno, tivessem somente 60 dias para uma decisão. Mas parece que o regulamento só vale para uma das partes envolvidas. O secretário de saúde de Rondónia, com apoio do governador, tirou algum do seu tempo durante a maior crise de saúde do seu estado para enviar uma carta protocolada para a USP. Que eu saiba, o reitor nem se dignou a responder. A Comissão de Ética da USP lavou as suas mãos como Pilatos, apesar dos meus apelos. Também não recebi qualquer apoio jurídico nem do paulista CREMESP, nem do rondonense CREMERO. Outro cliché: nos momentos difíceis descobrimos com quem podemos contar. Tenho uma ténue - mas mesmo muito ténue! - esperança que alguém com poder leia o meu livro e faça polimentos legislativos para que este ridículo não se repita com uma outra pessoa. Que as instituições possam aprender com os erros, porque voltarão a existir outras pandemias, terramotos, guerras, etc. Eu, após passar por este processo, estúpido e vil, fiquei com mais estima quando a justiça funciona, em vez de assumir que naturalmente funcionará. Aprendi que a justiça é uma mãe que nós todos, erradamente, “take for granted”. ** Ao conhecermos o trabalho e a história de Luís Moreira Alves, nos sentimos obrigados a ajudar e divulgar o gibi Dormindo entre cadáveres, mas também todo o absurdo burocrático e punitivo que se abateu sobre ele quando tudo que lhe interessava era ajudar o próximo. Dormindo entre cadáveres está em pré-venda em nossa loja online. ** O senhor(a) é atualmente um(a) assinante gratuito(a) de Livraria Trabalhar Cansa. Para uma experiência completa, faça upgrade da sua assinatura. |
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domingo, 17 de agosto de 2025
Dormindo entre cadáveres
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