Como formar sua biblioteca interiorPara ter qualidade, ser proveitosa, não tenho dúvida nenhuma de que qualquer leitura de literatura exige, antes de tudo, atenção tenaz e amorosa ao texto mesmo.Como formar sua biblioteca interior Por Alexandre Sartório Nossos Encontros: a arte de ler buscaram sobretudo apresentar a necessidade de se lerem obras literárias em profundidade, e um modo de fazê-lo. O caminho para aprofundar nossa relação com uma obra de ficção é difícil. Um livro de ficção não é um tratado que tenta dar um sentido único ao que quer dizer, mas é uma formulação individual que um artista faz da experiência humana, por isso tem necessariamente um sentido aberto e largo. Assim, um dos modos de ler que propus começa com a redução da obra a sua essência. Tentamos criar uma imagem, um quadro que condense aquilo que de mais essencial a obra carrega em si – e se modifica conforme vamos refletindo sobre ela. Para fazê-lo, devemos começar tranquilamente, sem pressa. É um ótimo auxílio catar palavras e elementos significativos da obra. Os grandes escritores não costumam usar fortuitamente elementos que se repetem ou que se destacam em passagens fundamentais do texto. Podemos tentar resumir o enredo da obra, os problemas de que trata. Depois dessas técnicas mais básicas que, acredito, servem a qualquer leitura que se queira fazer bem, quero relembrar uma relação de elementos sobre os quais busquei refletir em cada livro. Esses, em geral, servem para todo leitor, mas há alguns que já são mais pessoais, partem do meu particular modo de ler: Podemos dar atenção a alguns elementos do texto: linguagem, registros; personagens; símbolos (espaço ou elementos: caverna, mar etc.); estrutura da obra; espaço na narrativa; tempo na narrativa; aspectos sociológicos e históricos; tema; beleza; livro individual e sua relação com a obra do autor; o artista. Nas leituras dos quatro livros dos Encontros, escolhi destacar e analisar aspectos que considero importantes. Não são certamente o que todo crítico escolhe nem pretendo dizer que o meu modo de ler e analisar obras literárias é o melhor. Esse é o meu modo de me aproximar e desfrutar da literatura, e de aprender com ela: pensar relação entre a forma da obra de arte e a vida; entre a linguagem literária e a metafísica; estilo; estrutura de livro; relação da obra com o próprio tempo e com o nosso tempo; metalinguagem e o humano (arte e vida, desumanização da arte e aprofundamento no humano e na vida). Tendo em mente esse modo de ler, escolhemos coerentemente os autores que estudamos nos encontros: Graham Greene, Otto Lara Resende, Georges Bernanos e Sophia de Mello Breyner Andresen. Os quatro autores têm em comum alguns aspectos. O período em que produziram suas obras. Sua religião: eram todos católicos. E essa confissão é um dos elementos que forjaram a visão de mundo e o estilo deles: sua linguagem, seus temas, seu tratamento estético da realidade. Agora quero retomar a análise das obras, buscando fazer uma síntese do que elas são e do que as une. Essa análise de obras em conjunto é complexa. Mas acredito que ela seja muito rica, porque permite que vamos montando uma espécie de biblioteca interior, na qual novos livros vão entrando, modificando-a, mas sempre acrescentando, construindo, nunca destruindo. Acredito que essa biblioteca interior seja um dos espaços mais importantes que temos dentro de nós. Ela enriquece nossa vida interior e pode modificar nossa vida como um todo. Nossos autores são herdeiros do modernismo de inícios do século XX. Entre outras coisas, a literatura modernista se contrapôs à estética realista. Woolf, Proust, Joyce mergulharam na vida interior de seus personagens; diversos poetas e escritores desde o simbolismo se afastaram da arte como formulação crítica da realidade social, política, econômica, para fazer uma experiência, um vasculhamento, uma meditação – um mergulho – metafísico, procurando o verdadeiro interesse da vida, o sentido do ser, nos fundamentos mais profundos da realidade. Para alguns deles, esse sentido mais profundo da vida deveria ser criado esteticamente; poderíamos criar o sentido da existência em camadas mais profundas da realidade, para além das relações sociais e materiais – faziam como que uma metafísica agnóstica e estética. Para outros, esse fundamento não precisava ser criado, a realidade de fato está assentada no transcendente, em que o artista, como as almas religiosas todas, pode mergulhar, deixando que o sagrado ilumine o real e deixando-se, ele mesmo, o artista, iluminar. Todos esses artistas de que venho falando aqui, cuja concepção de arte e vida não eram hegemônicas à sua época, produziram desde o fim do século XIX até o século XX adentro, não deixaram de tratar da sociedade e da política – no entanto, voltaram sua criação literária para os aspectos espirituais e metafísicos do ser humano, sempre levando em conta sua relação profunda com a estética. Não queriam escapar da realidade desagradável que os cercava: queriam mergulhar mais profundamente nela, em toda sua verdade, suas dores e feiuras, em busca da luz. Praticamente todos eles voltaram-se para a metafísica por saber ou intuir que a verdade e o fundamento da realidade concreta não podem ser iluminados por explicações mecânicas: sejam elas sociológicas, psicológicas ou econômicas. É apenas chegando-se à parte mais profunda do real, fazendo um mergulho metafísico, que se pode ver, vislumbrar, tocar essa verdade e esse fundamento. Mesmo que o artista não veja nesse fundamento nada de transcendente, veja apenas matéria e acaso, esse fundamento precisa ser buscado. Em geral, no entanto, essa realidade transcendente se impõe ao artista, ainda que um transcendente não religioso no sentido tradicional, mas espiritual num sentido amplo, ou mesmo estético-espiritual. Os autores que figuraram nos Encontros são herdeiros de modernistas e simbolistas; foi entre os anos 30 e 60 que escreveram as obras que lemos. Os aspectos da realidade que são tratados pelos artistas modernos estão presentes nas obras dos escritores dos encontros; esses aspectos são mesmo essenciais. O que os destaca desse grande grupo de modernista, simbolista e herdeiros é a base metafísica de onde se irradia a experiência da realidade deles como todo. Eles tinham, com suas idiossincrasias é verdade, uma visão de mundo católica. A visão de mundo se reflete no estilo dos autores. Um bom exemplo de análise dessa relação, dando a ela o peso que merece, está em Tolstói e Dostoiévski, de Steiner, que comentei nos encontros. Nas apresentações busquei refletir sempre sobre dois aspectos estilísticos dos livros que estudamos: a metalinguagem e a relação dessas obras com o realismo. Ambos são importantes para o modernismo e para seus herdeiros. Como os modernistas, nossos autores partiram do tratamento da realidade concreta (relações sociais, política etc.) para mergulhar mais fundo na experiência do real. Nesse mergulho por meio da linguagem, não apenas chegaram a profundidades antes quase desconhecidas da vida interior humana, mas também da vida espiritual e das camadas transcendentes da realidade. Esse caminho exigiu a reflexão sobre a própria linguagem, sobre a arte e suas possibilidades. A obra de arte refletiu sobre si mesma – recorreu à metalinguagem. O que busquei mostrar foi que a metalinguagem desses artistas modernos não é mero jogo estético ou exibicionismo de artesão habilidoso. A linguagem literária mostra sua estrutura e seus ornamentos, fala deles e os exibe, a fim de nos revelar mais claramente o que está no seu interior. É como um relicário. Cada uma dessas obras é a revelação de algum fundamento metafísico da realidade. Nos seus aspectos linguísticos e metalinguísticos elas também são algo como uma experiência desse transcendente que sustenta o mundo, tem algo de experiência espiritual. A linguagem mesma (o tom, a estrutura do texto etc.) é um tipo de revelação e de vivência do transcendente: Em Fim de caso (1951), Graham Greene cultiva a “linguagem da conversão”; Otto Lara desenvolve em Boca do inferno(1957) a “linguagem da misericórdia”; Georges Bernanos, em Um sonho ruim (1934), a “linguagem da ascese”; e Sophia de Mello faz brilhar em Geografia (1967) a “linguagem da beatitude”. Acredito que esses autores sejam representantes significativos e de grande qualidade estética desse ramo da literatura (e da arte em geral) moderna. Acredito mesmo que esse aspecto metafísico, genericamente falando, é o fundamental de toda obra de arte. George Steiner tem um entendimento mais ou menos parecido com esse. Mas isso não é exatamente uma visão hegemônica atualmente. De qualquer forma, essas obras foram fundamentais para o que se fez na arte ao longo do século XX e no nosso século. Espero ter despertado a atenção de vocês para a riqueza imensa dessas obras, mesmo que vocês não tenham exatamente a visão de mundo dos autores ou a minha. O que procurei fazer durante os encontros foram análises literárias. A análise precisa ser, antes de tudo, estética. A literatura parte de um tratamento estético da linguagem, e isso deve ser, acho eu, o fundamento de qualquer análise. E, para ter qualidade, ser proveitosa, não tenho dúvida nenhuma de que qualquer leitura de literatura exige, antes de tudo, atenção tenaz e amorosa ao texto mesmo, ao que ele quer dizer, à sua beleza, à sua profundidade. Esse é o começo da formação de uma boa biblioteca interior. O senhor(a) é atualmente um(a) assinante gratuito(a) de Livraria Trabalhar Cansa. Para uma experiência completa, faça upgrade da sua assinatura. |
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sábado, 16 de agosto de 2025
Como formar sua biblioteca interior
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