A morbidez poética em EU de Augusto dos Anjos.Há um sincretismo existencial em Augusto dos Anjos, cuja formação indica a presença de outras vozes em seus versos, tornando-o uma singularidade pluralizada.A morbidez poética em EU de Augusto dos Anjos Por Ginaldo Silva Santos No início do século XX, a literatura brasileira atravessava um período de transição. De um lado, ainda era forte a influência das tendências artísticas da segunda metade do século XIX; de outro, já começava a ser preparada a grande renovação modernista, cujo marco no Brasil é a Semana de Arte Moderna (1922). As estéticas literárias não são estanques entre si e, muitas vezes, se tocam, se influenciam e se fundem. Assim foi que os críticos literários, ao longo dos anos, focalizaram Augusto dos Anjos como sendo o tuberculoso, o herói problemático de errante caminhada. Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1914) nasceu no Engenho Pau d’Arco, na Paraíba, no dia 20 de abril de 1884. Depois de exercer a profissão de advogado, foi promotor e professor de literatura. Foi poeta de um livro só: EU, escrito em 1912. Mesclando tematizações de fundo simbolista ao uso de termos extravagantes, exóticos e científicos, o poeta caracteriza-se por uma individualidade atormentada pelos paradoxos da existência. Seus poemas são cheios de lirismo e melancolia, abordando temas como a morte, cemitérios e hospitais, destacando-se além da linguagem científica, a temática do vazio das coisas, a putrefação e a decomposição da matéria. A obra é a soma de todas as tendências e estilos predominantes desde o final do século XIX na literatura brasileira. Recebe influências do Parnasianismo, do decadentismo, do Simbolismo e ainda antecipa o Modernismo. Alfredo Bosi chama atenção, em seu livro História concisa da Literatura Brasileira (1994), para uma tese de intransponível valor que projeta uma luminosidade para a compreensão da mimese em Augusto dos Anjos, captando a inversão do cientificismo, como ferramenta propulsora de sua poética, aproxima-o do pessimismo de Arthur Schopenhauer, que identifica na vontade de viver a raiz de todas as dores. O pensador postula que “todo o nosso ser já é vontade de vida” (SHOPENHAUER, 1994) condenando o destino humano a atuar sempre como um ser dependente desse impulso de realização. A redenção shopenhauriana projeta-se por meio do conhecimento articulado pela arte. A morte e o nada atingem um patamar revigorado em sua obra que espelha uma ojeriza pelas forças materiais, ao elegê-las insatisfatórias. Por essa angulação, percebe-se um fundamentalismo artístico semelhante ao do filósofo alemão em Augusto dos Anjos. De fato, esse pensamento representa um hipotético desapego da materialidade do mundo dos fenômenos, que encaminha seus seguidores a um tipo de ascese radical. Há um sincretismo existencial em Augusto dos Anjos, cuja formação indica a presença de outras vozes em seus versos, tornando-o uma singularidade pluralizada. Poder-se-ia citar um Baudelaire em menção ao estilo de Augusto dos Anjos. Não compartilha, entretanto, do satanismo baudelairiano e sim do prazer pela contemplação da putrefação como um dos signos da morbidez humana. O eu-poemático elege a gélida finitude da caveira, divorciada dos instintos da vontade, como possibilidade criativa de um anelo artístico-cosmológico fragmentado, contudo, pelo universo humano. Para Shopenhauer (2004) a morte não pode ser um mal, pois com a morte perde-se a consciência, mas não aquilo que a produziu e a manteve: a vida se extingue, mas não se extingue com ela o princípio de vida, que nela se manifestou. Enquanto os termos científicos resfriam quando articulados denotativamente, inflamam-se quando articulados ao poeta. O pulsar da vida torna-se escorregadio, declinando por sua pestilência essencial. A sexualidade é fragmentada, transformando o espaço dos escombros de uma subjetividade refreada. Quanto mais intensa é à força da matéria, mais brusca é a repulsa augustiniana frente o estado subalterno da vontade, o eu lírico, decomposto pela realidade fatalística da carne, se encontra num estado de problematização de sua própria índole. A morte vista como a égide do futuro, simboliza uma passagem para o estado de glorificação do nada, que fora roubado desde o segundo que a existência do ser se concretiza no mundo. Os vermes são o símbolo maior do destino dos humanos. Segundo Órris Soares (1919) o título EU vale por uma autopsicologia. É um monossílabo que fala. “O EU é Augusto, sua carne, seu sangue, seu sopro de vida. É ele integralmente, no desnudo gritante de sua sinceridade” (SOARES, 1919). No poema Monólogo de uma sombra o que aparece é a angústia. Trinta e uma estrofes repletas de desejo de vingança e provando, pela razão do sentimento, que a mais alta expressão da dor estética consiste essencialmente na alegria. A torturada sombra que fala, vem: Eu é composto em sonetos, quase todos decassílabos. Ao mesmo tempo percebe-se a influência simbolista, explicitada pela sonoridade dos versos, uso de iniciais maiúsculas e por alguns aspectos temáticos, como o ideal de transcendentalismo e a angústia cósmica, entre outros. A morte é um termo que pode se referir ao término da vida de um organismo vivo. Na literatura, independente do período literário, ela sempre esteve presente, seja para representar um a fuga da realidade, para por fim aos tormentos íntimos, por amor, ou até mesmo, pelo simples fato de querer ver esvair-se a vida de um corpo pelas próprias mãos. O tema é, sobretudo, universal. Na poética de Augusto dos Anjos ela está presente como característica fundamental para uma melhor compreensão de sua obra. Ela trata o assunto com uma linguagem metafórica e o sentimento de evasão da vida trava um verdadeiro embate interior, restando-lhe somente a certeza de que a morte não dorme e a espera numa angústia absurda e tragicômica. O desejo de vida que lhe resta interage com o medo, o fascínio com o temor, numa ambigüidade característica de seu ser. A morte é um aporta entreaberta. É o poder do poeta sobre si mesmo e sobre o mundo que o cerca. Passa a ser o sentido fundamental de se estar vivo, e viver passa a ser o seu caminho incansável para encontrá-la. A retórica delirante do poeta não termina, portanto, na referência cientificista. Augusto adquiriu súbita contemporaneidade, como em Budismo moderno: Augusto dos anjos é um poeta de estilo singular cujos temas demonstram uma perplexidade asfixiante perante a condição humana, a partir de uma projeção do ser no mundo que, conforme o poeta, é governado por uma vontade irracional e dilacerante. EU congrega temas de uma extraordinária riqueza literária e de imprescindível importância para a literatura brasileira, tendo em vista que representou uma arte de fundo pessimista. Uma síntese da morbidez associada ao linguajar cientificista e à ousadia das imagens encontra-se me Psicologia de um vencido. Diante da constatação de que para o homem não outro destino e não a putrefação da carne e a morte. Augusto transforma-se em um espectador em agonia desse processo cujo símbolo é o verme. Em sua alma atormentada as superexcitações provocam visões aterradoras. O mundo em que vive torna-se um vasto hospital, onde não há alegria, povoado por fantasmas errantes que não adquiriram a consciência de sua dor. Assombra-se com o futuro firmando-se no presente e na ciência racionalista. Para Shopenhauer “quando prevalece o conhecimento o homem avança ao encontro da morte com o coração firme e tranqüilo”. (SHOPENHAUER, 1884, p.345). Todas as poesias contidas em EU vestem-se do mesmo tom de beleza sombria. Se a consciência é o sentimento íntimo do eu, a dor possui a faculdade de aumentar a sensibilidade do poeta ao retratá-la.
A lírica de Augusto dos Anjos está voltada para a precariedade e para a decadência do homem. A solidão tubércula contribui para a sua formação poética, que de algum modo, exerceu influência na tessitura literária. No poema Os doentes Augusto declara com voz de um tísico sua triste sina e os eu desespero perante o mal que o abate: “Oh! Desespero das pessoas tísicas, adivinhando o frio que há nas lousas”... O eu lírico na sua poesia arquiteta a estrutura poética que o situa como ponto central. Augusto dos Anjos é comparado a Cesário Verde no que se refere à temática peculiar de ambos. E o ponto mais distinto entre essas duas poéticas está na linguagem, especialmente, no uso do lexo e os extratos morfo-semânticos. Os versos de O poema negro estão cheios de alucinações e desconexo. Nele Augusto dos Anjos se permite sonhar. E este sonho torna-se um pesadelo no qual o poeta mergulha na própria angústia, teme o verme frio que há de roer-lhe a carne: “é a morte – esta carnívora assanhada... serpente má de língua envenenada que tudo que acho no caminho, come...” (ANJOS, 1912 p.108). Seduzido por Charles Darwin (1859), autor do livro A origem das espécies, em que a base da teoria evolucionista está na luta pela vida, e que somente os mais fortes e os mais aptos conseguem sobreviver, Augusto projeta a sua realidade, que é o pulso imaginário em sua poética, e transforma a morte em matéria, perfeição cheia de enfermidades asquerosas, transfiguradas em versos vibrantes. É cosmogonia. O verme é também para Augusto dos Anjos o seu nome de batismo e antecede de forma futurista o movimento antropofágico de Oswald de Andrade no Modernismo brasileiro. Esse antropomorfismo é justificado nos versos de Solilóquio de um visionário: Lúcia Helena considera a obra de Augusto dos Anjos como “a manifestação poética de um jogo híbrido: nascimento/vida/morte/re-nascimento” (HELENA, 1984). É na esfera do poético que o EU promove o vivificar das células, da mônadas e das moneras, antes contaminadas em um discurso em consonância com o cientificismo naturalista, pela morte íntima de todas as coisas. A explicitação da lei pela morte serve de consolo a Augusto dos Anjos que não mais quer dela separar-se. Ela perde o seu terror quando se morre depois de consumida a própria vida. Concepção visionária do ser que se deixa consumir pelo transcendentalismo existencial. Tudo parece vir da razão. Augusto distancia-se da realidade quando acredita ser a morte uma conseqüência de sua própria imaginação. É do inconsciente que surge a sua agonia, transformando-o num ser acometido pela morbidez ilusória. Augusto dos Anjos enumera em EU uma série de estados mórbidos ligados tanto ao seu corpo quanto à sua mente. É um repositório de doenças atribuídas não somente ao eu lírico como também aos personagens contra os quais ele investe o seu juízo moral, marcado pela culpa. Esses personagens estão em deterioração. É o que se percebe nos versos de Apóstrofe à carne: EU, portanto, reitera o duplo testemunho de um discurso moralmente agressivo misturado com um intimismo confessional e dolorido. É um signo inaugural que, marcado pela enfermidade, expressa o espanto do poeta, em relação à morte, que além do temor, é o máximo de consciência possível para ele. É o nome símbolo da identidade individualizada em sua obra. O signo do nome está associado à idéia de perpetuação da vida. A sua identidade passa por diversos estágios de identificação, em que o indivíduo tem em si próprio uma identidade unificada, cujo resultado é uma elaboração discursiva que constrói, a sua narrativa particular do eu. A angústia particular do eu lírico, defrontando com o temor da morte, sucede a referência ao homem como um todo. Ele é concebido como uma antítese biopsicoquímica em que uma parte negra colide com outra alva e luminosa, harmonizando-se com o caráter genérico. O ser humano não é mais material e sim abstrato, representado pelos órgãos dos sentidos. Podridão é o vocábulo principal do poema. Ele não se refere apenas à deterioração do corpo, e sim ao legado vicioso que o eu lírico transmite, através da consciência culpada e melancólica que antecede a sua morte. O EU é, sobretudo, uma obra confluente por ter sido produzida num momento particularmente sincrético da história da literatura brasileira. A confluência é o modo de ser própria a toda obra de arte literária que compactua do vigor das manifestações do homem. Assim, o EU é um poema que se lança para além de seu próprio tempo. A obra de Augusto dos Anjos é um eu plurificado, que engendra múltiplos textos de si mesmo, da história dos tempos e do texto histórico. Não equivale, essencialmente, a um objeto produzido, utilitário, e sim, que se transforma no lugar do acontecimento existencial. O senhor(a) é atualmente um(a) assinante gratuito(a) de Livraria Trabalhar Cansa. Para uma experiência completa, faça upgrade da sua assinatura. |
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terça-feira, 22 de julho de 2025
A morbidez poética em EU de Augusto dos Anjos.
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