São Paulo, 09/04/2021. Desde o último registro aqui, li muita coisa e assisti a alguns filmes. Nos últimos três dias, incluindo hoje, estou lendo Pascal, com uma admiração imensa, pela expressão contundente da nossa miséria (algumas vezes com uma crueza terrível: “165 (210) O último ato é sangrento, por mais bela que seja a comédia em todo o resto. Lança-se finalmente terra sobre a cabeça e aí está para sempre”, Pensamentos, p. 70), dos limites, nossos e do nosso conhecimento (“188 (267) O último passo da razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam. Ela é apenas fraca se não vai até reconhecer isso”, Pensamentos, p. 74) – e da única saída, o único modo de nos entendermos a nós mesmos e sermos levados do pó à Luz: Jesus Cristo. “373 (476) É preciso amar só a Deus e odiar a só a si mesmo” (Pensamentos, p. 142). O resumo de nossa condição: “400 (427) O homem não sabe em que posição se colocar, está visivelmente extraviado e decaído de seu verdadeiro lugar sem poder reencontrá-lo. Busca-o por toda parte com inquietação e sem sucesso em meio a trevas impenetráveis” (Pensamentos, p. 154). Parece que a situação é mesmo esta. Mas: “E, se o homem nunca tivesse sido senão corrompido, não teria nenhuma idéia da verdade, nem da beatitude. Mas desgraçados que somos, e mais do que se não houvesse grandeza em nossa condição, temos uma idéia da felicidade e não podemos chegar a ela. Sentimos uma imagem da verdade e não possuímos senão a mentira. Incapazes de ignorar de modo absoluto e de saber de modo certo, tão manifesto está que já estivemos num grau de perfeição do qual infelizmente decaímos” (Pensamentos, p. 47, grifos meus). Outra passagem que desenvolve esta ideia: “Que nos brada pois essa avidez e essa impotência senão que houve outrora no homem uma felicidade verdadeira, da qual só lhe resta agora a marca e o vestígio totalmente vazio que ele inutilmente tenta preencher com tudo aquilo que o cerca, procurando nas coisas ausentes o socorro que não encontra nas presentes, mas que são todas incapazes de fazê-lo porque esse abismo infinito não pode ser preenchido senão por um objeto infinito e imutável, isto é, por Deus mesmo?” (Pensamentos, p. 60). As expressões são preciosas: ‘abismo infinito’ do nosso coração e ‘felicidade verdadeira’ que tivemos outrora. Em outro fragmento (134 (168)) sobre o sentimento da ‘imagem da verdade’, lembrei-me de Proust – o desejo da ‘felicidade verdadeira’, os divertissements, a angústia, a miséria, a ânsia da imortalidade, parecem uma figura da Recherche: “Não obstante essas misérias, ele quer ser feliz e nada mais quer do que ser feliz, e não pode não querer sê-lo. Mas que fará para isso? Seria preciso, para conseguir, que se tornasse imortal, mas, não podendo, resolve evitar pensar nisso” (Pensamentos, p. 50). Marcel evita pensar nisso ou se angustia. E, quando já desistia de alcançar a ‘felicidade verdadeira’, desequilibra-se num piso desnivelado no pátio do palácio dos Guermantes – e a felicidade desvela-se para ele, diz que o espreitou em diversos momentos e que é eterna. “Sentimos uma imagem da verdade”: na imagem da alma como o condutor e uma parelha de cavalos alados, do Fedro, de Platão, vem de termos visto algo da magnificência do que está cima da abóbada celeste, junto dos deuses, ainda que de passagem, sofregamente, por causa do desiquilíbrio entre os cavalos; deste vislumbre, ficou impressa na alma uma imagem da perfeição das Ideias; e, resumido no verso perfeito de Pessanha: “Eu vi a luz em um país perdido”. Estes dois não são cristãos. E Pascal é intransigente, profunda e desesperadamente cristão; desde esta semana, sempre que eu ouvir um discurso ecumênico, vão soar na minha cabeça as suas palavras: “416(456) A natureza é corrupta. Sem Jesus Cristo, o homem tem que ficar no vício e na miséria. Com Jesus Cristo, o homem fica isento de vício e de miséria. Nele está toda a nossa virtude e toda a nossa felicidade. Fora dele só há vício, miséria, erro, trevas, morte, desespero.” (Pensamentos, p. 157) Ele desenvolve também ideias fundamentais como da figura (cuja origem não sei, e que é retomada com atenção por Auerbach) – noção que usa principalmente para referir o modo como o Antigo Testamento tem diversas figuras, algo como antecipações (insinuações) que carregam, ao mesmo tempo, presença e ausência, de Cristo. A ideia de que, na impossibilidade de se livrar do bem e da natureza (da verdade), ao tentar fazê-lo, apenas adotamos substitutos indiscriminadamente: “397 (426) Perdida a verdadeira natureza, tudo passa a ser sua natureza; como tendo perdido o verdadeiro bem, tudo passa a ser seu verdadeiro bem” (Pensamentos, p. 153). E de que, sem a graça, sem Jesus Cristo, a civilização não extingue o Mal, mas o encobre: “211 (453) Foram fundamentadas e tiradas da concupiscência regras admiráveis de polícia, de moral e de justiça. Mas, no fundo, esse feio fundo do homem, esse fingimentum malum está apenas encoberto. Não está suprimido.” (Pensamentos, p. 90) Como principais provas de Deus, Pascal elenca “Moral. / Doutrina. / Milagres. / Profecias. / Figuras.” (Pensamentos, p. 154). Deus dá-se a conhecer ao nosso coração; a razão nada poderia se Ele não se inclinasse a nós. Entenda ou não a razão: “230 (430bis) Tudo o que é incompreensível não deixa de ser” (Pensamentos, p. 94). 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quinta-feira, 4 de dezembro de 2025
Diário e rememoração, IV
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